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segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Logos e Revelação - O Enigma de Heraclito

Turner, Joseph Mallord William, The Angel Standing in the Sun, 1846.
Londres: Tate Gallery.


  O processo de cair em si ou a consciência de que somos um enigma constitui o primeiro momento de todo o acto filosófico, de todo o acto criativo. O enigma surge como um desafio. A sua presença suspende o curso da vida. É portanto necessário sobreviver ao enigma, pois a passagem pelo enigma indica e inicia uma outra vida, uma outra consciência. Ora essa sobrevivência depende do discernimento e da acção. O enigma apresenta-se como a origem de uma inquietude, ou seja, resume todas as disposições afectivas numa só e a partir dela perturba a realidade anterior. A inquietação torna-se assim a plena consciência do enigma e dos limites que ele impõe. O enigma suspende o mundo enquanto extensão do eu e anula o próprio eu até se alcançar a sua revelação. O Logos é para Heraclito a revelação do enigma, ele é o princípio unificador e o portador da candeia do sentido. 

  Antero de Quental (308-9, vv. 1-4), num soneto intitulado "Logos", expressa a mesma ideia que observamos em Heraclito: 
                                       Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
                                       E, o que é mais, dentro de mim - que me rodeias
                                       Com um nimbo de afectos e de ideias,
                                       Que são o meu princípio, meio e fim…
Estes versos, logo quando dizem "Tu, que não vejo, e estás ao pé de mim", indicam a impossibilidade dos sentidos apreenderem o Logos. Essa determinação aponta para o fragmento do Efésio: "Más testemunhas são para os seres humanos os olhos e os ouvidos, se tiverem almas que não compreendam a sua linguagem" (DK 22 B 107). A linguagem, o Logos, torna-se assim a cifra e a chave do enigma. Por outro lado, Antero de Quental, ao dizer "estás ao pé de mim" e "me rodeias", demonstra a presença suprasensorial do Logos. Este está presente em todas as coisas, é o seu "princípio, meio e fim". 

  A ideia de presença universal surge também quando Heraclito diz que "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, estende-se a toda realidade e participa dela enquanto elemento activo, pois todas as coisas existem de acordo com o seus ditames (DK 22 B 1). Contudo, a maioria não segue esse Logos que é comum, prefere, por seu lado, uma sabedoria particular, que, na verdade, não é sabedoria alguma, porque a sabedoria não pode ser particular. A sabedoria tem de ser sempre uma experiência da totalidade.

  O soneto refere ainda "E, o que é mais, dentro de mim", ou seja, o Logos existe no humano. Heraclito afirma algo idêntico quando diz que "À alma corresponde um Logos que cresce por si só." (DK 22 B 115). Porém, convém referir que este Logo não existe apenas na alma, ele cresce, logo opera de forma dinâmica e estabelece um processo criativo. Na alma, o Logos tem a possibilidade de se auto-superar, de "crescer por si só". Bruno Snell comenta este fragmento da seguinte maneira: "Seja qual for o significado peculiar que tal frase possa ter, Heraclito atribui aqui à alma um logos que pode, a partir de si mesmo, estender-se e crescer. Por conseguinte, considera-se a alma como ponto de partida para determinados desenvolvimentos, ao passo que não teria sentido atribuir ao olho ou à mão um logos, que a si mesmo se amplia" (Snell: 44). 

  O Logos, enquanto revelação do enigma, não o anula, mas estende-se sim como uma síntese dos planos antropológico, cosmológico e teológico. O humano preserva em si essa qualidade essencial de enigma, pois o desenvolvimento do Logos, enquanto revelação constante do enigma, existe em si. Contudo, por mais que cresça, "Perante a divindade, o homem é considerado infantil, tal como a criança face ao homem" (DK 22 B 79; Cf. Fränkel: 214-28). O humano não pode superar os limites que lhe foram determinados, o seu valor sapiencial é nulo face à divindade, pois "Sábio é só um, que não consente e consente ser chamado pelo nome de Zeus" (DK 22 B 32). Jaeger diz que "Heraclito é o primeiro pensador que não deseja conhecer apenas a verdade, visto que sustem também que este conhecimento renovará a vida dos homens. Na sua imagem dos que estão acordados e dos que estão a dormir deixa ver o que espera do seu logos. Não tem nenhum desejo de ser outro Prometeu, ensinando aos homens novos e más engenhosos os métodos para alcançar os fins últimos; mas espera torná-los capazes de dirigir as suas vidas totalmente despertos e conscientes do logos segundo o qual ocorrem todas as coisas" (Jaeger: 115). 

  A filosofia de Heraclito não é meramente cosmológica, a sua grande finalidade é antropológica, a sua preocupação é o humano, daí que diga "Tentei decifrar-me a mim mesmo" (DK 22 B 101). O Filósofo Obscuro assume-se como um enigma e, por extensão, prolonga essa qualidade de enigma a toda a humanidade. A alma carece assim de uma revelação. O plano divino permanece eterno, uno e indiferente à realidade humana, daí que Heraclito diga que "A natureza humana (ethos) não possui nenhum instrumento para se conhecer, mas a divina possui" (DK 22 B 78). Ao ser humano, falta-lhe a chave para ultrapassar o portão fechado do enigma, visto que, uma vez colocado o enigma, é impossível virar-lhe as costas. Nietzsche expressa essa via de sentido único quando diz: "Segues o teu caminho para a grandeza: aqui ninguém deve seguir-te furtivamente! O teu próprio pé apagou o caminho atrás de ti, e sobre ele está escrito: 'Impossibilidade' " (Nietzsche 5: 176). Édipo escolheu o seu caminho. Era-lhe impossível voltar as costas à esfinge, pois a sua vida dependia da resolução do enigma.

  Em Nietzsche, o enigma oculta-se nas imagens de Apolo e revela-se no êxtase de Diónysos, daí que diga: "É a vós, que buscais, que tentais com ousadia, e a quem alguma vez embarcou com ardilosas velas em mares terríveis, é a vós, ébrios de enigmas, rejubilantes com o lusco-fusco, cuja alma é atraída ao som das flautas para todos os abismos labirínticos, pois não quereis seguir o fio, tacteando-o com mão timorata, e detestais deduzir, quando podeis adivinhar, é unicamente a vós que eu conto o enigma que vi - a visão do mais solitário" (Nietzsche 5: 179). O enigma existe num plano que não é dedutivo, mas sim intuitivo, senão mesmo instintivo. Apolo cria "os abismos labirínticos" e Diónysos, a atracção pelo "som das flautas", que eleva a alma à visão do enigma e a sua revelação. É nesse sentido que afirma que "Temos aqui diante dos nossos olhos, numa suprema simbologia artística, aquele mundo apolíneo de beleza e o seu subsolo, a terrível sabedoria de Sileno, e entendemos por intuição a sua mútua necessidade" (Nietzsche 1: 39).

  O enigma é terrível, pois é ele que inicia a experiência da queda, o cair em si, esse choque inicial de toda a pulsão criativa. O dom de criar é assustador, pois provém do assombro que é a totalidade, do absoluto que o humano rejeita. Nessa estrada de muitos caminhos, a escolha torna-se imperativa. Porém, a sabedoria do enigma é mediada pela intuição e, segundo Nietzsche, Heraclito alcançou-a na perfeição: "O dom real de Heraclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação que se efectiva em conceitos e combinações lógicas" (Nietzsche 6: 40). Ora é com base no princípio de representação intuitiva que Heraclito diz: "O saber de muitas coisas não ensina a intuição. Se assim fosse teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, e também Xenófanes e Hecateu" (DK 22 B 40; Cf. Mansfield: 442-48). O saber deve ser orientado para um fim e não se deve dispersar, senão a intuição não é alcançada. Não se chega ao Logos, que está presente em todas as coisas, sem uma visão teleológica de totalidade, daí que Heraclito afirme que "É mais necessário extinguir a desmedida que um incêndio" (DK 22 B 43). A não aceitação dos limites e a sua transgressão implica a prática de um crime, que deve ser severamente castigado. As Erínias hão-de perseguir os infractores, obrigando-os a pagar com a sua própria vida. Esse é o preço de seguir a outra via, pois, sem a visão de totalidade, é tudo destruição e morte.

  É a consciência dos limites que permite a apreensão do enigma e da sua revelação. No entanto, para ser a humano, o conhecimento dos limites implica o conhecimento da finitide e da morte, o que, tendo em conta a sua arrogância, a sua predisposição para ignorância e a sua incapacidade de acolher o dom do nascimento, não é fácil de alcançar. Nesse mesmo sentido, Heraclito diz que "É difícil combater contra a paixão; o que ela quiser, está disposta a pagá-lo com a alma" (DK 22 B 85). A alma descontrolada que se deixa mergulhar no sonho e na paixão enche-se de vapores húmidos e torna-se molhada e, segundo o Efésio, "A alma seca é mais sábia e melhor" (DK 22 B 118), pois o ar está mais próximo de se tornar fogo do que a água e é o fogo sempre vivo que governa todas as coisas. Encontramos assim em Heraclito a primeira doutrina dos elementos, não numa concepção cosmológica, mas sim como fundamento de uma teoria da alma e como modelo de sabedoria.

  Giorgio Colli afirma que "o enigma é a manifestação na palavra daquilo que é divino, oculto, uma interioridade indizível" (Colli: 49). Heraclito revela isso mesmo no célebre fragmento: "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 40; Cf. Nietzsche 7: 203-5; Hölscher: 229-30). A palavra sugerida, qual canto oracular, possui um carácter demiúrgico, um valor de passagem entre o humano e o divino. Neste sentido, a sugestão torna-se superior à revelação, pois esta define e indica o fim, a outra abre caminhos, desbrava as florestas ignotas. Existe também na sugestão um sentido didáctico, uma vez que, na maior parte dos casos, o ser humano é incapaz de compreender o alcance da revelação, desse Logos comum, mas desconhecido, e assim a única solução é sugerir essa realidade, é indicar os sinais, as luzes que guiam na sombra. 

  O fragmento "Tentei decifrar-me a mim mesmo" não constitui um solipsismo radical. Heraclito não rejeita o mundo, mas nega a compreensão que a maioria julga ter. O filósofo não deixa de brincar com as crianças no templo de Ártemis (Diógenes Laércio: IX, 3; Marco Aurélio: VI, 42), pois existe na infância a mesma simplicidade e reconhecimento do Deus que joga aos dados. Nietzsche diz que o "«Conhece-te a ti mesmo», é toda a ciência - Só depois de conhecer todas as coisas o homem se conhecerá. Pois as coisas são simplesmente as fronteiras do homem." (Nietzsche 8: 44, §48). Heraclito tentou conhecer essas fronteiras, esse limiar que separe e une o cume e o abismo. A doutrina do Logos, a noção de harmonia e de guerra e a concepção de uma divindade una que assimila todos os contrários são a prova desse esforço gnoseológico. Em Heraclito, tudo aponta para a revelação do enigma.

  O Logos é o elemento central no pensamento de Heraclito, daí que Guthrie diga que "Heraclito acredita primeiro e acima de tudo no Logos" (Guthrie: 419). Existe portanto uma universalidade do Logos, todavia o Logos, sendo acessível a todos, mas não é partilhado por todos. Nietzsche afirma que "Nós veneramos tudo o que é tranquilo, frio, nobre, longínquo, passado, tudo aquilo cujo aspecto não obrigue a alma a defender-se e guarnecer-se, tudo aquilo a que se pode falar; sem elevar a voz." (Nietzsche 4: 109). A visão do Logos é sublime, ela traz paz à alma, pois é o seu "princípio, meio e fim". A alma não se defende dele porque ele é o seu motor, nela ele cresce por si só. Já Aristóteles defende, pelo contrário, que "Para Heraclito o princípio consiste na própria alma, em virtude de ela ser aquela emanação quente pela qual todos seres são criados. Trata-se, por conseguinte, de uma realidade incorpórea e em mutação contínua: conhece-se o movimento consoante mais se movimenta, sendo sua opinião (e também a de muitos outros) a circunstância de todos os seres se encontrarem em movimento" (De Anima, 405 a 25-30). Porém, não compreende que este movimento da alma é regulado por um princípio único e universal, o Logos.

  O estilo oracular de Heraclito não é um mero artifício de linguagem, mas sim uma metodologia do Logos, uma imagem sibilina da revelação do enigma. Nesse sentido, Nietzsche diz que "Nos escritos de um eremita nota-se sempre também algo do eco do deserto, algo do ciciar e do tímido olhar da solidão; das suas palavras mais fortes, mesmo do seu grito, ressoa ainda uma espécie nova e mais perigosa de silêncio, de mutismo. Quem esteve sentado durante anos, dia e noite, só com a sua alma em discussões e diálogos íntimos, quem na sua caverna - seja ela um labirinto ou uma mina de ouro - se tornou um urso ou um pesquisador ou guarda de tesouros, um dragão: as suas ideias acabam por adquirir um tom de meia-luz, um odor de profundidade e de decomposição, algo de incomunicável e de repugnante que lança um bafo frio aos que passam" (Nietzsche 3: 213, §289). Existe portanto uma impossibilidade hermenêutica de compreensão dos escritos de um eremita. Foi face a esse limite de interpretação que Heraclito colocou o seu livro no templo de Ártemis. Os seus escritos estavam ao alcance de todos, mas só os eleitos, os iniciados na sabedoria do Logos, os podiam ler. O elitismo de Heraclito resulta assim do valor do enigma e do sentido da sua revelação.

  Heraclito compreendeu que a maioria, o vulgo, era incapaz de compreender a verdade, pois estava preso à sua sabedoria particular, à incoerência das suas verdades, das suas opiniões. A ignorância parte sempre do particular, daquela negação individual, e só se torna colectiva quando, por vontade, o pensamento deixa de ser uma harmonia concordante e se torna uma comum discórdia. Nietzsche aponta para esse caminho quando afirma que "O filósofo grego atravessava a existência com o sentimento secreto de que havia muito mais escravos do que se pensava: quem quer que não fosse filósofo, era escravo do seu ponto de vista" (Nietzsche 2: 53, §18). No entanto, se não existisse uma esperança de que alguns seriam capazes de ler o seu livro, Heraclito teria-o destruído, mas ele não o fez, deixou-o à mercê da interpretação, daqueles que o procurassem.

  Heraclito não era apenas um filósofo, era um poeta, com a necessidade e o dever de cantar a Verdade. Aos seus olhos, tudo era nítido, não existia nem dúvida, nem hesitação, pois, como diz Dodds, "o poeta não pede para ser 'possuído', mas apenas para servir de intérprete para a Musa possuída." (Dodds, 82). Heraclito foi sobretudo um intérprete do Logos e é ele que o afirma: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). O Efésio surge com uma voz oracular que não é sua, mas sim do Logos. Nietzsche compreendeu na perfeição o valor da revelação de Heraclito, a obra a que ele se propunha, e expressa-o através de Zaratustra. O respeito por este filósofo é tão grande que o leva a afirmar que "o mundo precisa eternamente da verdade, precisa, portanto, eternamente de Heraclito: embora ele não precise do mundo." (Nietzsche 6: 55). 

  Heraclito decifrou-se a ele mesmo como um enigma e atingiu a revelação máxima do ser humano, do mundo e de deus. Foi essa transformação, aquela que estabelece a passagem entre o enigma e a revelação, que o tornou, não um filósofo, mas sim um sábio. O pensamento do Obscuro é o enigma, a sabedoria que, embora não ouvida, persiste como verdade e caminho.


Bibliografia

Antero - Quental, Antero de, "Logos" in Poesia Completa 1842-1891, Org. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

Aristóteles (De Anima) - Aristóteles, Da Alma (De Anima), Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70, 2001.

Colli - Colli, Giorgio, O Nascimento da Filosofia. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s/d.

Diógenes Laércio - Diógenes Laércio, Lives of the Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução Robert Drew Hicks. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 1925.

DoddsDodds, E. R., The Greeks and the Irrational. Berkeley and Los Angeles and London: University of California Press, 1951.

Fränkel - Fränkel, Hermann, "A Thought Pattern in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical EssaysOrg. Alexander P. D. Mourelatos. Princeton: Princeton University Press, 1993, pp. 214-228.

Guthrie - Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, Vol. I. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.

Heraclito (DK 22 B)Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Hölscher - Hölscher, Uvo, "Paradox, Simile and Gnomic Utterance in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical EssaysOrg. Alexander P. D. Mourelatos. Princeton: Princeton University Press, 1993, pp. 229-238.

Jaeger - Jaeger, Werner, La Teologia de los Primeros Filosofos Griegos, Trad. José Gaos. México, Madrid, Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica; 1982. 

Mansfield - Mansfield, Jaap, Studies in the Historiography of Greek PhilosophyAssen/Maastricht: Van Gorcum & Comp. B.V., 1990.

Marco Aurélio - Marco Aurélio, Pensamentos, Trad. João Maia. Lisboa: Relógio D'Água, 1995.

Nietzsche 1 - Nietzsche, Friedrich, O Nascimento da Tragédia. Tradução Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Friedrich, Gaia Ciência, 2a. Edição. Tradução Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores; 1977.

Nietzsche 3 - Nietzsche, Friedrich, Para Além do Bem e do Mal, Trad. Hermann Peluger; Lisboa: Guimarães Editores; 1978; p. 213 (§289).

Nietzsche 4 - Nietzsche, Friedrich, Genealogia da Moral, Trad. Carlos José de Meneses. Lisboa: Guimarães Editores, s/d.

Nietzsche 5 - Nietzsche, Friedrich, Assim Falava Zaratustra - Um Livro para Todos e Ninguém. Tradução Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D' Água, 1998.

Nietzsche 6 - Nietzsche, Friedrich, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Nietzsche 7 - Nietzsche, Friedrich, Considerações Intempestivas, Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa: Editorial Presença, 1976, p. 203-205.

Nietzsche 8 - Nietzsche, Friedrich, Aurora, Trad. Rui Magalhães. Porto: Rés Editora Lda., 1977, p. 44 (§48).

SnellSnell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

O Lugar das Bacantes entre o Apolíneo e o Dionisíaco

Poussin, Nicolas, Bacanal, 1625-26.
Madrid: Museu do Prado.

   Nietszche desenvolveu uma cosmovisão a partir do elemento dionisíaco e da sua oposição ao elemento apolíneo. Segundo Colli, partiu " das imagens de dois deuses gregos, Dioniso e Apolo, e mediante o aprofundamento estético e metafísico dos conceitos de 'dionisíaco' e 'apolíneo ' delineia primeiramente uma doutrina da emergência e da decadência da tragédia grega, em seguida uma interpretação global da cultura grega, e até uma nova visão do mundo." (Colli: 14). Esta conflito entre Apolo e Diónysos firma-se em três intenções: denunciar o estado de decadência a que chegou a tragédia grega, promover uma interpretação global da cultura grega e criar uma nova concepção do mundo. Ora é nessa continuidade que as personagens de Eurípides se incluem: Diónysos está para o dionisíaco como Penteu está para o apolíneo.

  No Nascimento da Tragédia, o filósofo afirma que "Muito teremos ganho para a ciência estética se houvermos chegado, não apenas à perspiciência lógica, mas à certeza imediata da intuição segundo a qual a evolução da arte se encontra ligada à duplicidade do elemento apolíneo e do elemento dionisíaco: de modo semelhante àquele como a geração depende da dualidade dos sexos, em luta permanente e reconciliação apenas periódica" (Nietzsche 1: 23). Concluímos portanto que é determinante para a "ciência estética" chegar à intuição que toda a arte evolui a partir dos elementos apolíneo e dionisíaco, os quais mantêm-se em permanente oposição, tal como o macho e a fêmea. O valor desta oposição encontra-se, por exemplo, em Heraclito, um filósofo de eleição de Nietzsche, sobretudo quando diz que "Pólemos é o pai de todas as coisas e de todas elas é soberano, a uns apresenta-os como deuses, a outros, como homens, a uns torna-os escravos, a outros, homens livres" (DK 22 b 53) e que "É necessário saber que a guerra (Pólemos) é comum, e a justiça é discórdia e que tudo acontece segundo a discórdia e a necessidade" (DK 22 b 80). Pólemos é assim uma condição necessária para a manutenção da ordem, pois a sua ausência implicaria a anulação de toda a realidade, daí que Nietzsche valorize a oposição estabelecida entre Apolo e Diónysos, pois a sua não-existência conduziria à extinção da própria arte. Segundo esta discórdia criadora, a guerra torna-se assim a origem da arte.

  Nietzsche começa por dizer: "principiemos por pensá-los como sendo os mundos artísticos separados do sonho e do êxtase" (Nietzsche 1: 23), atribuindo assim o sonho a Apolo e o êxtase a Diónysos. "A bela aparência dos mundos do sonho, em cuja produção cada ser humano é um pleno artista, constitui o pressuposto de todas as artes plásticas e também, como veremos, de uma metade importante da poesia" (Nietzsche 1: 24), afirma ele, daí que Colli diga que "Segundo Nietzsche, Apolo é o símbolo do mundo como aparência, de acordo com o conceito schopenhaueriano de representação" (Colli: 16). O domínio de Apolo é a aparência, pois este é a "consciência que cura e ajuda no sono e no sonho" (Nietzsche 1: 26). O sonho, bem como a imaginação, resumem o prazer que é próprio da aparência e que dela depende. Porém, o terror causado pela desorientação face ao conhecimento da complexidade da existência e dos seus fenómenos, juntamente com o quebrar do principium individuationis, que nos conduz ao lado mais íntimo do ser humano, faz com que nos aproximemos do elemento dionisíaco. O carácter de Diónysos apresenta-se como uma analogia do êxtase (Nietzsche 1: 27). Desta forma, o elemento dionisíaco é uma forma de superação do terror a que o elemento apolíneo conduziu, daí que Nietzsche diga que "Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser humano e outro: também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o ser humano" (Nietzsche 1: 27-8). O elemento apolíneo divide e mostra a realidade na sua diversidade, na sua multiplicidade, o que é próprio da aparência. Já o elemento dionisíaco une o que outro separou, une o homem à natureza, une o que Apolo afastou.

  Esta relação entre os dois elementos contrários pode ser esclarecida por Heraclito, quando diz que "As coisas em conjunto são o todo e o não-todo, algo que se reúne e se separa, que está em consonância e em dissonância; da totalidade, a unidade e da unidade, a totalidade" (DK 22 b 10). A alternância que se estabelece entre as duas naturezas primordiais permite que um seja a origem da multiplicidade e o outro, da unidade. Através do elemento dionisíaco, o homem liberta-se, "Agora o escravo é um homem livre, quebram-se agora todas as limitações rígidas e hostis que a necessidade, arbitrariedade ou uma 'moda insolente' estabeleceram entre os seres humanos" (Nietzsche 1: 28). Apolo expressa o rigor de Nómos e Diónysos, a liberdade de Phýsis, logo "O ser humano já não é o artista, tornou-se a obra de arte: o poder artístico da natureza inteira, para a satisfação voluptuosa do Uno originário, revela-se aqui sob os arrepios do êxtase." (Nietzsche 1: 28). No entanto, Nietzsche também diz que existe "um monstruoso abismo que separa o grego dionisíaco do bárbaro dionisíaco", pois neste último "o centro dessas festas residia num deboche sexual exagerado, cujas ondas transbordavam por sobre todo o mundo da família e os seus respeitáveis estatutos; precisamente as instâncias mais bestialmente selvagens da natureza eram aqui libertas, até se atingir aquela repugnante mistura de volúpia e crueldade que sempre pareceu ser a verdadeira 'poção mágica'" (Nietzsche 1: 30-1). De facto, o culto dionisíaco assumiu diferentes formas e passou por várias transformações, todavia a sua introdução na Grécia não é tão tardia como pensava Nietzsche e Rohde.

  Para Nietzsche, Apolo expressava-se através da arte dórica que se desenvolvia em torno de um grande esforço imagético, de um desejo de criação de imagens. Essa arte era escutada no som da cítara, que se oponha ao vigor da música dionisíaca. Nesse sentido, diz que "No ditirambo dionisíaco, o ser humano é incitado a uma intensificação extrema de todas as capacidades simbólicas; algo nunca sentido manifesta urgência em ser exprimido, a destruição do véu de Maya, a unicidade como génio da espécie e mesmo da natureza" (Nietzsche 1: 32). Arquíloco é, segundo ele, um poeta dionisíaco e Homero um poeta apolíneo. O primeiro, como poeta lírico, procura "unir-se totalmente com o Uno primordial, com a sua dor e conflito" (Nietzsche 1: 44) e reproduz esse "Uno primordial" através da música, a qual já é uma "repetição do mundo", uma "segunda reprodução" (Nietzsche 1: 44), ou seja, une o elemento dionisíaco ao elemento apolíneo, une o êxtase ao sonho.

  É importante distinguir, como Nietzsche faz no Crepúsculo dos Ídolos, que "A embriaguez apolínea excita sobretudo o olho, de modo que ele obtém a força da visão. O pintor, o escultor e o épico são visionários par excellence. No estado dionisíaco, pelo contrário, é todo o sistema emocional que é excitado e intensificado, de maneira que, com um só golpe" (Nietzsche 2: 75-6). Enquanto o elemento apolíneo estimula a visão, o elemento dionisíaco estimula todo o sistema emocional, permitindo que este chegue aos limites da sua própria expressão. Esta extensão do elemento dionisíaco torna-se evidente quando afirma que "O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, ficava aqui submerso no esquecimento de si próprio, inerente aos estádios dionisíacos, e esquecia as normas apolíneas. O excesso desvendava-se como sendo a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores falava de si a partir do coração da natureza. E assim, em todos os lugares onde penetrava o elemento dionisíaco, o elemento apolíneo era suprimido e destruído" (Nietzsche 1: 41). É devido a essa natureza que, nas Bacantes, Diónysos tem uma acção tão destruidora, mas para isso temos de considerar Penteu e todos os outros o que a ele se opuseram como paradigmas da cultura apolínea. No entanto, em última instância, não podemos considerá-los dessa forma, uma vez eles representam também a decadência da cultura apolínea. Lembremos pois que "Apolo não podia viver sem Dioniso!" (Nietzsche 1: 40). Esta tensão tem um carácter de finalidade e propósito. O  racionalismo moral de Penteu renuncia Diónysos, mas a sua franqueza é tal que ele não resiste à divindade, pois "o deus Dioniso é demasiado poderoso; o mais inteligente dos seus adversários - como Penteu nas Bacantes - é por ele enfeitiçado sem o saber, correndo depois sob esse feitiço ao encontro do seu destino fatal" (Nietzsche 1: 88). Desta forma, e defendendo o seu próprio pensamento, Nietzsche diz que "Também Eurípides era, num certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava através dele não era Dioniso, nem tão-pouco Apolo, mas um demónio recém-nascido chamado Sócrates" (Nietzsche 1: 89). Penteu não é mais que um socrático falsamente disfarçado de apolíneo, o seu moralismo não provém de Delfos, mas sim de uma época e cultura que, segundo Nietzsche, está em decadência, que já não é nem ctónica, nem olímpica. 

   É forçoso concluir-se que "Tendo chegado portanto ao ponto de reconhecer que Eurípides não conseguiu de maneira alguma fundamentar o drama apenas no elemento apolíneo e que, pelo contrário, a sua tendência não dionisíaca se desviou para um domínio naturalista e não artístico, poderemos agora aproximar-nos da essência do socratismo estético, cuja lei suprema diz mais ou menos o seguinte: 'Tudo tem de ser inteligível para ser belo', como sentença paralela à lei socrática, segundo a qual 'só é virtuoso quem sabe'" (Nietzsche 1: 91). Eurípides repeliu o elemento dionisíaco e tentou sustentar-se no carácter apolíneo, todavia, segundo Nietzsche, o que conseguiu foi uma interpretação errónea dos desígnios de Apolo, tendo acabado por cair na decadência do socratismo. Ao anular a oposição que se estabelecia entre os dois irmãos, anulou toda a criação artística, deixando a arte limitada à estética socrática. Em suma, podemos afirmar que Penteu é a máscara do próprio Eurípides. Na trama das Bacantes, ele é Penteu, é ele que luta contra Diónysos, é ele que no fim sai derrotado. É o deus que vence e Eurípides sabia disso, daí que no fim da sua vida tentasse redimir-se e abraçar Diónysos e o dionisíaco.



Bibliografia:

Bacantes - Eurípides, Bacantes. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Edições 70, 2011.

Colli - Colli, Giorgio, O Nascimento da Filosofia. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s/d.

DK - Diels, Hermann e Walter Kranz (Ed.), Die Fragmente der Vorsokratikers, 15ª Edição, 1971. A Tradução dos três fragmentos apresentados é da responsabilidade do autor.

Nietzsche 1 - Nietzsche, O Nascimento da Tragédia. Tradução Helga Hoock Quadrado. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos ou Como se Filosofa com o Martelo. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.

Rohde - Rohde, Erwin, Psique - El Culto de las Almas y la Creencia en la Imortalidad entre los Griegos, 2 Volumes, Tradução Salvador Fernández Ramírez. Barcelona:Las Ediciones Liberales Editorial Labor, 1973.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Unidade e Multiplicidade em Heraclito e Nietzsche

Ender, Johann, Das Trevas, a Luz, 1831.
Budapeste: Academia Húngara das Ciências.


  O problema da relação entre a unidade e a multiplicidade é, no questionamento filosófico, primordial e fundamental, uma vez que a sua síntese constitui a génese do cosmos, resume a variedade de coisas existentes num princípio único que as reúne e que lhes confere sentido. Em Heraclito e em Nietzsche, este problema constitui uma gradação que ora é crescente, ora decrescente, ou seja, unidade, dualidade, multiplicidade e o seu movimento inverso. A diversidade das coisas existentes resume-se numa oposição entre dois princípios em conflito, que se sintetizam na expressão última e una da realidade. No entanto, estes três planos não se apresentam sobre uma estrutura hierárquica, eles cruzam-se num único plano que é o real, só o modo como a eles se acede é que diverge. Para a multiplicidade e para dualidade, o acesso dá-se pelos sentidos, pela experiência, enquanto a apreensão da unidade pressupõe um esforço intuitivo, daí que Heraclito diga: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). Desta forma, o sentido que ele expressa ultrapassa-o, vai para além do particular. O Logos que deve ser ouvido é a expressão última do cosmos, que diz que todas as coisas são uma e que indica a existência de uma unidade subjacente à multiplicidade das coisas. Ora, a partir deste fragmento, conclui-se que, no plano do real, a unidade e a multiplicidade coexistem devido à natureza do Logos, enquanto princípio unificador.

   É o Logos que permite que se compreenda a relação entre unidade, dualidade e multiplicidade. Heraclito indica essa compreensão quando diz "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar, do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, ele confere unidade, pois, embora a maioria não o consiga apreender, ele está presente em todas as coisas. Charles Kahn interpreta este fragmento da seguinte forma: "Em suma, o logos é 'comum' por que ele é (ou expressa) a estrutura que caracteriza todas as coisas, é portanto do domínio público e, por princípio, está disponível a todos os homens" (Kahn: 101). Ou, como diz Bruno Snell, "Uma segunda qualidade do logos em Heraclito é que ele é um koinón, algo de «comum», isto é, penetra tudo, de modo que tudo participa dele. Este espírito está em todas as coisas" (Snell: 43).

   Em Heraclito, a unidade é expressa também pelo facto dos contrários serem duas expressões de uma mesma coisa, sendo, no entanto, próprio da sua natureza manterem-se em oposição e luta constante. Este aspecto leva Heraclito a dizer que "O deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome, muda, tal como o fogo, quando é  misturado com incenso e designado conforme o seu aroma" (DK 22 B 67), bem como "Pólemos é o pai de todas as coisas e de todas elas é soberano, a uns apresenta-os como deuses, a outros como homens, a uns fá-los escravos, a outros homens livres" (DK 22 B 53). O primeiro fragmento mostra a relação entre unidade e dualidade. O deus é um conjunto de contrários, unidos em si mesmo, ou seja, dia e noite expressam as duas possibilidades de um dia, inverno e verão as duas faces do ano, a guerra e a paz as duas formas de estar da humanidade, a saciedade e a fome os dois estados do apetite. Em suma, é um único aspecto que exprime os contrários, respectivamente o dia, o ano, a humanidade e o apetite, e o deus é todos eles. A outra parte do fragmento introduz a alternância dos contrários e o devir, uma vez que compara o deus ao fogo, que, quando misturado com incenso, muda de nome conforme a fragrância do incenso. O segundo fragmento afirma o carácter universal de Pólemos, dizendo que este é o pai e soberano de todas as coisas, ou seja, a guerra, a discórdia, é a matriz da realidade. A guerra é também uma forma de alternância que apresenta uns como deuses, outros como homens, uns faz escravos, outros homens livres.

   O Efésio afirma que "É necessário saber que a guerra (Pólemos) é comum, e a justiça (Dikê) é discórdia (Éris), e que tudo acontece segundo a discórdia e a necessidade" (DK 22 B 80). Este fragmento pode ser dividido em três partes: na primeira, concluímos que a guerra é comum, está presente em todas as coisas, tal como o Logos; na segunda, que a justiça é discórdia, ou seja, ela surge a partir de um jogo de forças, de uma luta entre aspectos consonantes e dissonantes; e, na terceira, que tudo acontece segundo discórdia e necessidade, isto é, tudo resulta de um conflito entre elementos opostos e é a força da Necessidade que, como soberana, semelhante ao Logos, sobre esses elementos opera e governa. Werner Jaeger complementa esta ideia ao dizer que "Em Heraclito essa luta torna-se pura e simplesmente o 'pai de todas as coisas'. A dike só aparece na luta. (…) Aparecem em toda a natureza a abundância e a penúria, causas da guerra. Toda a natureza está repleta de violentos contrastes: o dia e a noite, o verão e o inverno, a guerra e a paz, a vida e a morte sucedem-se em eterna mudança. Todas as oposições da vida cósmica se transformam continuamente umas nas outras e reciprocamente se apagam os prejuízos que causam, para prosseguir com a imagem do processo jurídico. Todo o processo do mundo é uma troca (amoibê). A morte de uma vida é sempre a vida de outra. É eterno o caminho, ascendente e descendente" (Jaeger: 227). Esta é quiçá uma proposta de interpretação para o enigmático fragmento: "Imortais mortais, mortais imortais, que vivem a morte deles e morrem a sua vida" (DK 22 B 62). Nesta explicação de Jaeger, podemos encontrar dois aspectos complementares: por um lado, o valor atribuído a uma Justiça natural, que regula a acção dos opostos e a sua eterna luta, mas que só existe devido a existência deste conflito; e, por outro, a ideia que "Todo o processo do mundo é uma troca", troca esta que expressa a alternância dos contrários, a vitória de um é derrota do outro, todavia a vitória é efémera e quem estava hoje a perder amanhã será o vencedor.

   Nietzsche segue o caminho iniciado por Heraclito quando  diz que "Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põe termo à guerra: a luta persiste pela eternidade fora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna"(Nietzsche 5: 42). Logo, mais uma vez, toda a mudança tem a sua génese nessa alternância dos opostos e cuja dinâmica  primordial é expressa por uma luta constante.

   A procura de sentido na  relação entre unidade e dualidade é contnuada por Nietzsche. Em O Nascimento da Tragédia, os dois elementos, apolíneo e dionisíaco, opostos entre em si, constituem uma forma única de arte, a tragédia ática, isto é, de dois aspectos contraditórios surge uma estrutura única, um modelo plural, mas uno. Apolo e Diónysos tornam-se, não só nos dois elementos fundamentais da tragédia, como também nos dois princípios interpretativos da realidade. Ao primeiro corresponde o sonho, ao segundo o êxtase, um fala por imagens, o outro por altas intuições. Apolo representa a aparência, sendo também o criador da fantasia (Burkert: 285-294), segundo Dante uma "alta fantasia"(Paraíso, XXXIII, 142). A fantasia representa o carácter radical da poesia, da grande poesia. A afinidade entre Apolo e as Musas exemplifica esse ethos radical da fantasia e da poesia enquanto expressão da vida. Por outro lado, ao deus de Delfos, pertence também o principium individuationis, princípio este que possibilita toda a particularização e nascimento da individualidade. Já Diónysos representa o que está por detrás da aparência, ele promove o êxtase, a embriaguez, o entusiasmo de viver (Burkert: 318-328 e Rohde: 303-327). Ao deus que faz as Ménades dançar, pertence a superação do indivíduo, daí que Nietzsche diga que "Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser humano e outro, também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o ser humano"(Nietzsche 1: 27-28). Face a esta expressão de êxtase, "Agora, no Evangelho da harmonia dos mundos, cada um sente-se não apenas unido, reconciliado, fundido com o seu próximo, mas como um ser único, como se o véu de Maya estivesse rasgado e já só esvoaçasse em farrapos perante o misterioso Uno primordial" (Nietzsche 1: 28).

   Gianni Vattimo interpreta este aspecto da seguinte maneira: "Esta relação entre apolíneo e dionisíaco é acima de tudo uma relação de forças no interior de cada homem, que no início da obra Nietzsche compara com os estados de sonho(o apolíneo) e da embriaguez (o dionisíaco); e que funciona no desenvolvimento da civilização como a dualidade dos sexos na conservação da espécie. Toda a cultura humana é fruto do jogo dialéctico destas duas pulsões (Triebe)"(Vattimo: 18). Neste aspecto, bem como em outros, o pensamento de Nietzsche revela uma grande simpatia pela filosofia de Heraclito, pois também entre estes elementos nietzschianos existe um luta, um Pólemos que, à semelhança dos opostos do Efésio, é também origem e fonte da civilização, da cultura, e, em especial, da arte. É através deste conflito que se atinge o fundo primordial das coisas, que se esconde por detrás do véu da aparência. Esse elemento oculto é como o Logos que, embora seja visível, não é visto por todos. A unidade esconde-se por detrás da multiplicidade, daí que Heraclito diga: "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10). O apolíneo e o dionisíaco escondem o "misterioso Uno primordial". Um revela-o por sugestão e o outro, através do êxtase, por comunicação directa e intuitiva. Heraclito refere esse poder de sugestão de Apolo quando diz que "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 93). Este é um deus que fala por sinais, por imagens.

   No prólogo à Gaia Ciência, Nietzsche dedica a Heraclito um conjunto de versos, que intitula de Heraclitismo: "Toda a felicidade da terra/ Está na luta, amigos!/ Sim, para nos tornarmos amigos/ É necessário o fumo da poeira!/ Os amigos só são unos em três casos:/ Serem irmãos diante da miséria,/ Serem iguais diante do inimigo,/ Serem livres… diante da morte!" (Nietzsche 2: 25). A luta é, nestes versos,  o valor por excelência, pois é mediante a sua acção que se garante a felicidade terrena e a amizade, todavia, essa unidade que é a guerra está também presente na miséria, na união face ao inimigo e na morte. Apesar desta concórdia entre a filosofia de Heraclito e de Nietzsche, Gilles Deleuze salienta a inovação nietzschiana: "O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas o Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido; tomam um novo sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do múltiplo enquanto múltiplo (pedaços ou fragmentos); o Ser diz-se do devir enquanto devir. Tal é a inversão nietzschiana, ou a terceira figura da transmutação. Já não se opõe o devir ao Ser, o múltiplo ao Uno(…). Pelo contrário, afirma-se a necessidade do acaso. Dioniso é jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um objecto de afirmação: afirma os fragmentos, os membros do acaso; desta afirmação nasce o número necessário, que reconduz o lançamento dos dados. Vemos qual é a terceira figura: o jogo do eterno Retorno. Retornar é precisamente o ser do devir, o uno do múltiplo, a necessidade do acaso"(Deleuze: 30). Porém, Heraclito não deixa de estar presente, uma vez que é essa ideia de jogo que é indicada no fragmento: "A vida é uma criança a brincar, movendo as peças do jogo: nele a criança é soberana" (DK 22 B 52). Por outro lado, esta ideia de união do uno do múltiplo, de um expressar o outro, de um ser a expressão fragmentada do outro é indicada pelo filósofo grego quando este afirma que "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10).

   Deleuze introduz também a "terceira figura" do jogo: o eterno retorno. Sobre esta ideia, Nietzsche, no Ecce Homo, diz o seguinte: "A doutrina do «eterno retorno», ou seja, de um ciclo repetido, incondicionado e eterno, esta doutrina de Zaratustra poderia talvez já ter sido ensinada por Heraclito. Pelo menos a Stoa, que herdou de Heraclito quase todas as suas ideias, apresenta sinais dela" (Nietzsche 3: 102). Nietzsche admite a hipótese de esta ideia já ter sido afirmada por Heraclito. João Vila-Chã salienta um outro aspecto importante acerca do «eterno retorno», quando diz que "Podemos dizer, finalmente, ser o eterno retorno para Nietzsche uma realidade eminentemente selectiva, e isso numa dupla dimensão. Em primeiro lugar, porque constitui lei constitutiva da autonomia da vontade que se quer ver livre da moral: tudo aquilo que se quer deve ser querido de maneira a que com esse mesmo querer se queira também o seu eterno retorno. Por outro lado, a ideia de eterno retorno significa aqui também ser selectivo, já que, na realidade, apenas retorna aquilo que pode ser afirmado, ou que, por outras palavras, pode ser causa de alegria no ser. Tudo o que é negativo, tudo quanto deve ser negado, é simplesmente expulso pelo movimento do eterno retorno" (Vila-Chã: 23-24). O Eterno Retorno apresenta-se como uma filosofia da vontade e uma afirmação da vida. No Crepúsculo dos Ídolos, continua essa ideia ao afirmar: "O dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas; a vontade de viver, que se alegra com o sacrifício dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade - eis o que eu chamo dionisíaco, eis o que adivinhei como a ponte para psicologia do poeta trágico"(Nietzsche 4: 119). A filosofia de Nietzsche é ela mesma um jogo de forças e de oposições, Pólemos é o pai, é a génese do seu pensamento, a semente que, com uma falsa harmonia de opostos, ilude e esconde. Heraclito é, no seu aspecto mais antigo, o pai espiritual de Nietzsche, tal como Schopenhauer é o seu pai moderno.

   Em suma, tanto em Nietzsche como em Heraclito, a unidade e a multiplicidade não estão separadas hierarquicamente, elas fundem-se no mesmo plano. A unidade expressa-se na oposição, na guerra dos contrários, tal como a multiplicidade esconde a unidade. O valor do pensamento destes dois filósofos reside numa explícita afirmação da vida e na recusa de uma metafísica inimiga da vida e das suas pulsões inaugurais.



Bibliografia:

Burkert - Burkert, Walter, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Tradução Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1993.

Dante - Dante, Divina Comédia, 5ª Edição. Tradução Vasco Graça Moura. Venda Nova, Bertrand Editora, 2000.

Deleuze - Deleuze, Gilles, Nietzsche e a Filosofia, 2ª Edição. Tradução António M. Magalhães. Lisboa: Rés Editora, 2001.

Kahn - Kahn, Charles H., The Art and Thought of Heraclitus - An Edition of the Fragments with Translation and Commentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

Heraclito - Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995(1986).

Nietzsche 1 - Nietzsche, O Nascimento da Tragédia. Tradução Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Gaia Ciência, 2a. Edição. Tradução Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores; 1977.

Nietzsche 3 - Nietzsche, Ecce Homo. Tradução José Marinho. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1952.

Nietzsche 4 - Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos ou Como se Filosofa com o Martelo. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.

Nietzsche 5 - Nietzsche, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873). Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Rohde - Rohde, Erwin, Psique - El Culto de las Almas y la Creencia en la Imortalidad entre los Griegos, 2 Volumes, Tradução Salvador Fernández Ramírez. Barcelona: Las Ediciones Liberales Editorial Labor, 1973.

Snell - Snell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

Vattimo - Vattimo, Gianni, Introdução a Nietzsche. Tradução António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1990

Vila-Chã - Vila-Chã, João J., "Friedrich Nietzsche (1844-1900): Considerando Alguns Efeitos" in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LVII, Fascículo 1, 2001, pp.3-28.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Penteu e Diónysos em "As Bacantes" de Eurípides

Caravaggio, Baco, c.1596, Florença: Galleria degli Uffizi.

  A tragédia de Eurípedes As Bacantes é provavelmente o melhor testemunho clássico da natureza de Diónysos e do seu culto. Segundo Kitto, "As Bacantes é, de todas as suas tragédias, a melhor construída. Muitos reivindicariam esta honra para Hipólito, talvez com razão; contudo As Bacantes tem mais unidade e um ímpeto dramático que não se sente a cada passo em Hipólito"(Kitto: 326). Esta passagem mostra que Kitto estabelece uma relativa igualdade de importância entre as duas tragédias, contudo atribui a predominância As Bacantes. Podemos afirmar a semelhança que existe entre as duas tragédias, uma vez que o tema da impiedade, ou seja, o do desrespeito aos deuses, está presente em ambas. Em Hipólito é Afrodite que é ofendida e em As Bacantes é Diónysos. A oposição entre piedade e impiedade era um aspecto fundamental para os deuses, pois estes eram exigentes nos cultos que os gregos tinham de lhes prestar, sendo possuídos pela ira quando estes os desrespeitavam e desobedeciam às ordens.

  As Bacantes começa com uma fala de Diónysos em que este se apresenta como filho de Zeus e de Sémele, "Venho aqui, a esta terra dos Tebanos, eu, que sou filho de Zeus, eu, Diónisos, a quem gerou um dia Sémele, a filha de Cadmo, assistida no seu parto pela chama do relâmpago" (Bacantes: 1-3). Diónysos continua, dizendo que "É que as irmãs de minha mãe - quem menos devia fazê-lo - costumavam afirmar que eu, Diónysos, não nasci de Zeus e que Sémele, por invenção de Cadmo, depois de subjugada por um mortal qualquer, atribui a Zeus a falta no leito cometida" (Bacantes: 25-31). Este é o primeiro acto ímpio contra Diónysos. As irmãs de sua mãe não o vêm como filho de Zeus e rejeitam a sua ascendência divina, rejeitam-no como deus. Diónysos irado com tal acto torna esta mulheres suas servidoras, faz delas ménades, e afirma "Por isso eu as sacudi para fora de suas moradas, tomadas de delírio, e, de espírito enlouquecido, habitam na montanha. E forcei-as a usar a libré das minhas orgias, e a toda a raça feminina dos Cádmios, a quantas mulheres havia, fi-las sair de casa, desvairadas" (Bacantes: 32-6). Desta forma, não só as irmãs de sua mãe foram arrastadas para as orgias como todas as mulheres de Tebas.

  Da impiedade das filhas de Cadmo, passa-se para a impiedade de Penteu, "Ora Cadmo entregou as honras da realeza a Penteu, de sua filha nascido, que declarou guerra aos deuses na minha pessoa e me expulsa das libações, sem nunca se lembrar de mim nas suas preces. É por esses motivos que eu vou demonstrar, a ele e a todos os Tebanos, que sou um deus" (Bacantes: 44-8). Segundo estas afirmações, temos de considerar, por um lado, os actos ímpios de Penteu, nos quais ele desrespeita não só Diónysos, mas todos os deuses, pois quem ofende o filho de Zeus ofende o próprio Zeus e quem ofende o Pai dos Deuses ofende todos os deuses, por outro lado, temos de considerar a ira que é despertada em Diónysos que fará com que prove que é um deus e diga "Mas se a cidade de Tebas procurar, na sua fúria, e pela força das armas, trazer as Bacantes das montanhas, entrarei em combate, lutando juntamente com as Ménades" (Bacantes: 50-3). Todavia, Cadmo e Tirésias preparam-se para se juntarem às ménades, vestem a nébride, enfeitam o tirso e estão prontos para dançar. Cadmo diz: "Com que prazer nos esquecemos da nossa velhice!" (Bacantes: 188-9), o que está de acordo com os atributos de Diónysos, pois este é um deus que experimentou a morte e voltou renascido, assim da juventude passa-se à velhice e da velhice à juventude. Penteu, no entanto, não segue o exemplo dos anciãos e continua a ofender Diónysos. Persegue as suas servas, as suas sacerdotisas, e afirma: "Estava eu acaso longe desta terra quando oiço as novas que vão por esta cidade: que as mulheres nos abandonaram as casas para irem a umas supostas bacanais, e que vagueiam pelas montanhas umbrosas, dançando em honra desse deus de última hora, esse Diónisos, ou lá quem é; e que no meio dos tíasos estão os krateres cheios e que uma a uma se refugiam num recanto isolado, para aí se submeterem à lascívia masculina. De pretexto servem-lhes, sem dúvida, os rituais das Ménades, mas à frente do culto de Baco colocam o de Afrodite."(Bacantes: 215-26). Nestes versos, encontramos traços da personalidade de Penteu que é determinada por um moralismo extremo e por um exacerbado desdém por Diónysos, " desse deus de última hora, esse Diónisos, ou lá quem é ". Penteu considera que as mulheres usaram o culto de Diónysos como pretexto para expressar a sua promiscuidade, daí que diga " mas à frente do culto de Baco colocam o de Afrodite".

  A impiedade do rei de Tebas é de tal ordem que chega até a ameaçar directamente Diónysos, "Se eu o apanho dentro destes tectos, acabarei com o seu bater do tirso e o sacudir da cabeleira: arranco-lhe o pescoço para fora do corpo"(Bacantes: 239-41). A ameaça ao homem que corporiza Diónysos é um indício da sua sorte, pois é ele que irá ficar com "o pescoço para fora do corpo". Tirésias responde a Penteu dizendo: "É que há duas coisas, ó jovem, que ocupam o primeiro lugar entre os homens: a deusa Deméter, que é a Terra, seja qual for o nome por que queiras designá-la; é essa que nutre os homens com alimentos secos; e o que chegou depois, o rebento de Sémele, o que, para completar, inventou e introduziu entre os homens o licor dos cachos, o licor que faz cessar os desgostos dos atormentados mortais, quando se enchem da torrente da videira, e proporciona o sono como olvido dos males do dia a dia - nem há outro remédio contra o sofrimento"(Bacantes: 274-83). Esta passagem faz referência a dois dos mais importantes mistérios gregos: os mistérios de Elêusis e os mistérios dionisíacos. Estes estão interligados, uma vez que dizem respeito à Terra, os seus ciclos e aos seus frutos, daí que Tirésias diga que são duas as coisas "que ocupam o primeiro lugar entre os homens", uma é a Terra que os alimenta e outra é o Vinho que os faz esquecer dos sofrimentos e das desgraças próprias da vida humana. Tirésias continua e, como resposta aos actos de Penteu, apresenta uma concepção de Sophia: "Mas obedece-me, Penteu: não te vanglories de que é a força que domina dos homens; e, se tiveres um pensamento, mas o teu pensar enfermo, não temes esse pensamento por sabedoria. Recebe o deus nesta terra, faz-lhe libações, pratica os rituais báquicos e coroa a tua cabeça"(Bacantes: 309-12). De nada servem os pensamentos daqueles que têm o "pensar enfermo" e Penteu têm-no, pois não presta culto a Diónysos.No entanto, Penteu não ouve as palavras de Tirésias e de Cadmo e manda prender Diónysos. Quando o trazem amarrado, Penteu interrogou-o e, numa das falas , Diónysos diz: "Os nossos ritos têm horror à impiedade" (Bacantes: 476). Penteu mantém-se descrente face à origem divina de Diónysos e deixa o estrangeiro preso. Porém, este liberta-se e Penteu fica desesperado e, entretanto, as ménades dirigem-se para as montanhas. Penteu quer persegui-las com os seus guardas, mas Diónysos adverte-o do perigo de tal acto. A impiedade do rei é, todavia, maior que prudência.

  Diónysos oferece a Penteu uma resposta para o seu desejo de justiça: o rei deve vestir-se de ménade para que possa ver, com seus próprios olhos, os rituais que tanto repudia. O deus ajuda-o a arranjar-se, tecendo a rede que o levará ao fim desejado, a punição pela falta, pela hybris cometida, mas Diónysos avisa-o sempre: "Não vás derrubar as capelas das Ninfas e os lugares onde habita Pã e onde se escuta o tocar do siringe."(Bacantes: 951-2) ou "Serás transportado no regresso.. (…) …Nos braços da tua mãe"(Bacantes: 968-9). A curiosidade era desproporcionada, logo aventurou-se no meio das ménades. Porém, não resistiu à investida, tendo sido descoberto pelas ménades e dilacerado como um animal. Os primeiros golpes foram desferidos por sua mãe, Ágave. No entanto, Ágave, movida ainda pelo delírio, não reconheceu o seu acto, não se apercebeu que matou o próprio filho,pois julgou ter morto um leão. No entanto, quando se liberta do êxtase e olha para a cabeça que tem na mão, exclama: "O que vejo é a maior das dores, desgraçada de mim"(Bacantes: 1282). Concluiu que ela, as suas irmãs e as outras mulheres foram arrebatadas pelo deus, segundo Cadmo, "Para castigar a vossa insolência, já que não reconhecíeis nele [Diónysos] um deus"(Bacantes: 1297). Cadmo também é castigado, terá de deixar a sua terra, a pátria que construiu.

  Diónysos justifica estas sentenças, por um lado, pela impiedade cometida contra ele, por outro, pelo facto de Zeus ter aceite tal justiça, "Há muito que Zeus, meu pai, aprovou estes acontecimentos"(Bacantes: 1349). A peça termina com o coro a dizer:
"Muitas são as formas do divino
e muitas coisas os deuses fazem sem contar.
Vimos o que esperava não se realizar,
p'ra o que não se sabia o deus achar caminho.
Assim vistes o drama terminar"
(Bacantes:1388-1392).
Este desfecho apela para um desenlace de tipo deus ex machina que, segundo Aristóteles, "É, pois, evidente que também os desenlaces devem resultar da própria estrutura do mito, e não do deus ex machina(…) Ao deus ex machina, pelo contrário, não se deve recorrer senão em acontecimentos que se passam fora do drama, ou nos do passado, anteriores aos que se desenrolam em cena, ou nos que ao homem é vedado conhecer, ou nos futuros, que necessitam ser preditos ou prenunciados - pois que aos deuses atribuímos nós o poder de tudo verem."(Poética: 1454 b 1-8). A afirmação de Aristóteles permite compreender que tragédias como As Bacantes não tinham a perfeição estrutural que a tragédia devia ter, em sentido contrário está o Édipo Rei de Sófocles, um exemplo de perfeição. Porém, Eurípides, nesta peça, desenvolve um tema que iria precisar de um deus ex machina, pois ao opor a esfera humana à esfera divina, a impiedade de Penteu à ira de Diónysos, teria de avançar com desfecho regulado e sentenciado pelos ditames proferidos pela divindade, ou seja, a hybris de Penteu e de todos os que não reconheceram Diónysos como deus é punida pela própria divindade e com a concordância de Zeus. Segundo Kitto, "Dioniso não está a vingar-se de Penteu sòmente, mas de todos - Cadmo e os que se deixaram enganar por ele - que o rejeitaram."(Kitto: 330), ou seja, Diónysos pune todos os que o desrespeitaram. No entanto, Penteu foi o líder da impiedade e portanto foi o que sofreu com toda a violência a sua ira. É também de se notar que "Reflecte-se acerca da 'sabedoria', mas todas essas reflexões se originam directamente a partir do conflito de Penteu e Dioniso"(Kitto: 334-5). A discussão acerca da sabedoria resulta da oposição entre Penteu e Diónysos.

  É Polemos que se estabelece entre os dois intervenientes principais e é através de si que se desenrola todo mito e que se define o valor simbólico desta tragédia. Penteu representa o paradigma da Grécia clássica do século V a. C., mas este é um paradigma decadente. A razão já não tem força para lutar, deixa-se ir, não consegue resistir ao culto dionisíaco, os seus limites são mais extensos do que se imaginava. A curiosidade mística abarcou-se da sua alma e a moral restritiva é demasiado frágil. Pelo contrário, a religião dionisíaco atinge o universal, supera-se a si mesma, cresce, e, mesmo admitindo a hipótese de que Diónysos vinha da Trácia para a Grécia, temos de concluir que o seu culto expande-se sem restrições. Lembremos as palavras de Tirésias quando diz que duas são as coisas mais importantes na vida dos homens, por um lado, a Terra que nos nutre e nos alimenta, Deméter que semeia, cresce e colhe e, por outro, o vinho de Diónysos que ajuda a esquecer os tormentos da vida, que nos introduz nos mistérios do desconhecido e que nos deixa embriagados com a revelação. Deste modo, segundo Jaeger, "Em As Bacantes, obra da sua extrema velhice, pretendeu-se ver uma auto-descoberta do poeta, uma fuga do intelectualismo iluminista para a experiência religiosa e a embriaguez mística."(Jaeger: 410). Nesta peça, Eurípides supera o racionalismo decadente da sua época e isola-se num individualismo místico, apesar de céptico em alguns pontos, Eurípides procura a verdade religiosa, aquela que está para além dos limites da razão, e se esse tema apresenta alguns traços leves em Hipólito, é em As Bacantes que estes aspectos são mais fortes e intensos, daí que Jaeger continue e diga que "Mas em As Bacantes aparecem já profeticamente todos os sintomas: o triunfo do maravilhoso e da conversão interior sobre o intelecto, a aliança do individualismo e da religião contra o Estado, que para a Grécia tinha coincidido com a religião, a experiência imediata e libertadora da divindade na alma individual, livre das limitações de toda a ética da lei". Em suma, "Eurípedes é o criador de um tipo de arte que já não se fundamenta na cidadania, mas na própria vida"(Jaeger: 411) e , assim, a alma é liberta pela divindade e reconhece-se na própria vida. 


Bibliografia:
Poética - Aristóteles, Poética. Lisboa: INCM, 2000.
Bacantes - Eurípides, Bacantes. Lisboa: Edições 70, 2011.
Hipólito - Eurípides, Hipólito. Lisboa: Edições Colibri, 1993.
Kitto - Kitto, H.D.F., A Tragédia Grega - Estudo Literário, 2 Volumes, 2ª Edição. Coimbra: Arménio Amado Editora, 1990 (1970).
Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995 (1986).
Édipo - Sófocles, Édipo Rei, 2ª Edição. Lisboa: Edições 70, 1989.

sábado, 10 de setembro de 2016

Diónysos e o Culto de Dionisíaco

Dossi, Dosso, Bacchus, c.1524. Colecção Privada
Fonte: http://www.wga.hu/support/viewer/z.html

  O culto de Diónysos é considerado como sendo posterior aos cultos tradicionais, todavia uma análise mais ampla, considerando outras regiões para além da Grécia continental e um período mais antigo, revelam o contrário, pois como diz Maria Helena da Rocha Pereira: "Os Gregos tinham a noção de que era de introdução recente. No entanto, sabe-se agora que algumas tabuinhas em Linear B, do séc. XIII a.C., contêm o nome de Diónisos junto do de outros deuses. Mais ainda, conhece-se actualmente uma inscrição votiva a Diónisos num templo de Ceos, onde o culto se efectuara sem descontinuidade desde o séc. XV a.C."(Pereira, 1997: 318). A conclusão da antiguidade de Diónysos e do seu culto permite que exista uma outra percepção da sua origem e dos seus atributos. A origem do culto está intimamente relacionada com a evolução das características da divindade que o preside. Segundo Burkert, "aparentemente, Dioniso pode ser descrito como deus do vinho e do êxtase embriagante. A embriaguês provocada pelo vinho, como alteração no estado de consciência, é interpretada como intervenção de algo divino. No entanto, a experiência dionisíaca excede largamente o aspecto alcoólico e pode ser totalmente independente dele. O 'devaneio' torna-se um fim em si mesmo"(Burkert: 318). Desta forma, só de uma forma imediata e redutora é que se pode considerar Diónysos o "deus do vinho e do êxtase embriagante", pois o vinho é só um meio para um fim que é independente e distinto da embriaguez.

  O devaneio que se procura na experiência dionisíaca é expresso pela "manía, palavra grega para este estado, designa, de acordo com a sua proveniência, em ligação etimológica com ménos, o 'frenesim', não um delírio em consequência da 'loucura', mas uma intensificação da 'força espiritual' autovivenciada. Todavia, o êxtase dionisíaco não é algo que é alcançado por um indivíduo só, mas um fenómeno de massas que se propaga de modo quase contagioso"(Burkert: 318). Este devaneio, este frenesim, procura iniciar, reforçar, estimular e intensificar a experiência espiritual, não de um indivíduo apenas, mas sim da comunidade. Para compreender este aspecto colectivo, lembremos o fragmento de Heraclito: "Por isso, é necessário seguir o comum; mas, se bem que o Logos seja comum, a maioria vive como se tivesse uma compreensão particular"(DK 22 B 2 e Kirk, Raven & Schofield: 193). Este não deve ser considerado no contexto da doutrina do Logos, mas sim na oposição feita entre o comum e o particular, pois é o comum que dá a ideia da unidade, enquanto que o particular dá asas à multiplicidade. O devaneio dionisíaco tem essa finalidade, a unidade, o comum, no sentido em que une uma força colectiva que ultrapassa e supera o seu domínio particular. Daí que Burkert diga que "Quem se entrega a este deus arrisca-se a perder a sua identidade social e a ser louco"(318). O seguidor do culto de Diónysos perde o seu lugar, confortável, na sociedade dos homens e une-se à totalidade divina numa experiência mística. Esta perspectiva pode ser comparada com a loucura divina, presente no Fedro de Platão, onde se diz que "existem duas espécies de loucura: uma nascida das enfermidades humanas e a outra provocada por um impulso divino que nos leva a abandonar os costumes habituais"(265a) e "no que respeita à divina, dividimo-la em quatro categorias que atribuímos a quatro deuses: a inspiração mântica a Apolo; a mística a Dioniso; a poética, por seu lado, às Musas; e, em quarto lugar o delírio amoroso, que afirmamos ser o mais excelente, atribuímo-la a Afrodite e a Eros."(265b). A experiência dionisíaca é uma loucura divina de carácter místico. O devaneio ou a loucura mística produzem "a fusão entre o deus e o seu adorador que ocorre durante esta metamorfose não tem paralelo no resto da religião grega" e "o sinal exterior e o instrumento da metamorfose provocada pelo deus é a máscara"(Burkert: 318), isto porque o deus quebra os laços, os nós, que unem a personalidade ao corpo. Diónysos liberta o homem dos seus limites e constrangimentos, supera a personalidade humana e coloca uma máscara no homem como símbolo dessa alteração, oferece-lhe uma imagem união primordial sem o eu ou o nome.

  Se, por um lado, Walter Burkert e Maria Helena da Rocha Pereira mostram a antiguidade do culto de Diónysos, por outro, os testemunhos clássicos, como o de Erwin Rohde, classificam Diónysos como o mais jovem entre os deuses, dizendo que o seu culto tem origem na Trácia. Segundo Rohde, "os mesmos gregos tinham declarado, muitas vezes e em várias ocasiões, que a pátria originária do culto de Dioniso era a Trácia" (308). Burkert diz que "o nome [de Diónysos] é um enigma"(II: 320), pois a sua etimologia não é totalmente grega, mas segundo a mitologia ele é filho de Zeus e de Sémele, esta a pedido de Hera pede para ver Zeus em todo o seu esplendor e é fulminada como uma árvore, para salvar o filho que repousava no ventre dela Zeus coloca-o na sua coxa para terminar a gestação. Daí que, segundo este autor, "a loucura do próprio deus delirante pode ser explicada com a ira de Hera. Hera representa a ordem normal da pólis. A inversão desta ordem é a ira de Hera. Ainda assim, é nesta inversão que Dioniso realiza a sua verdadeira natureza"(324). A oposição entre Hera e Diónysos adquire um carácter simbólico, pois opõe a ordem normal da pólis à sua total transgressão, em última instância podemos dizer que opõe nómos e physis. A oposição entre estas duas divindades também está presente na acção das ménades, estas abandonam o matrimónio e os filhos, situações consagradas a Hera, para se juntarem ao culto de Diónysos.

  Outro aspecto de Diónysos é a sua associação com as três fases da vida, respectivamente o nascimento, a morte e o renascimento. Aquando do nascimento "Hermes leva a criança divina e entrega-a às ninfas e ménades num local distante e misterioso chamado Nisa, onde Dioniso cresce para, mais tarde, regressar com poderes divinos"(Burkert: 324). Contudo, "o nascimento de Dioniso, celebrado no ditirambo, a sua primeira epifania, coincide com um 'sacrifício inefável', ao qual na realidade cultual corresponde o sacrifício do touro. Depois Dioniso desaparece no além, mas ele regressará e exigirá veneração de novo"(Burkert: 325). Diónysos experimenta a morte e sobrevive a ela, ele morre e renasce, entrega-se à morte e regressa imortal, daí que Heraclito diga que Hades e Diónysos são o mesmo, "pois se não fosse em honra de Dioniso que eles realizavam a procissão e cantavam o hino às partes pudendas, essa prática seria o acto mais vergonhoso; mas  Hades e Dioniso, por quem eles deliram e celebram as Leneias, são o mesmo"(DK 22 B 15 e Kirk, Raven & Schofield: 217). Diónysos é uma síntese da vida e da morte e o êxtase dionisíaco é o seu conhecimento, a sua experiência. 

  Este aspecto de nascer, morrer e renascer tornou-se propício à expansão dos mistérios na Grécia, daí que Burkert diga que "Dioniso é o deus da excepção. À medida que o indivíduo conquista a sua independência, o culto de Dioniso torna-se expressão da separação de grupos privados face à pólis. A par dos festivais dionisíacos públicos emergem mistérios privados em honra de Dioniso. Estes são esótericos e realizam-se durante a noite. O acesso é feito através de uma iniciação individual, teleté. A gruta ou a caverna báquica surge como um símbolo do secreto, do oculto e do transcendente"(554). Para além do aspecto já referido que diz respeito à oposição entre a ordem normativa da pólis e a sua superação e consequente libertação do indivíduo, estas afirmações apontam para mais dois aspectos de Diónysos e do seu culto, que são: o aspecto iniciático e o aspecto sexual. O primeiro inclui-se nos mistérios gregos, os de Elêusis e os Órficos, pois neste cultos a iniciação representam a morte e o renascimento do indivíduo, o que por si já está relacionado com as características do deus. O segundo surge, neste contexto, associado ao primeiro, pois a gruta representa um carácter iniciático e um simbolismo sexual, uma vez que esta é uma parte integrante da própria Terra, o feminino imanente. A associação fonética, em inglês, de womb and tomb também indica uma analogia entre os órgãos sexuais femininos e a própria Terra, tornando-os assim símbolos de nascimento, morte e renascimento. O simbolismo religioso da gruta, a par com a sua representação sexual, está presente nas religiões primitivas. Mircea Eliade diz: "Uma das primeiras teofanias da Terra, enquanto tal, enquanto sobretudo camada telúrica e profundidade ctónica, foi a sua 'maternidade', a sua inesgotável capacidade de dar fruto. Antes de ser considerada Deusa-Mãe, divindade de fertilidade, a Terra impôs-se como Mãe, Tellus Mater."(312-3).

   Diónysos é um deus com um carácter mais telúrico do que celeste, com uma expressão semelhante à de Pã, pois em muitas representações, sobretudo arcaicas, Diónysos aparece também com chifres e ambos têm como animais sagrados os animais com cornos: para Pã o bode e para Diónysos o touro. Se, por um lado, já se referiu a presença da simbologia sexual feminina, por outro lado, é o carácter fálico que se torna mais relevante neste culto, daí que "O significado do falo não é a procriação - as ménades defendem-se sempre da impertinência dos sátiros, se necessário com a ajuda do tirso. O falo é um elemento de excitação por si mesmo, e sobretudo também símbolo de algo extraordinário - uma procissão com um falo gigante faz também parte das Dionisías."(Burkert: 326-7). Desta forma, conclui-se que no culto dionisíaco existe um aspecto fálico que transmite o próprio devaneio e êxtase que lhe é inerente. O culto do falo relaciona-se com a orgia dionisíaca. Na orgia antiga e religiosa, a sexualidade tem uma natureza e expressão divinas, daí que se possa falar em hierogamos, ou seja, em casamento sagrado, no qual é celebrada a união dos dois aspectos, o masculino e o feminino, o céu e a terra. Com Diónysos, o hierogamos não têm um carácter de representação cósmica, como no culto de Hera e de Zeus, mas sim de celebração da fertilidade. Diónysos é um deus da terra e da natureza, tal como Pã, daí que a orgia seja uma celebração da fertilidade, o que pode está relacionado  com a actividade sexual. Mircea Eliade refere que "de modo geral, a orgia corresponde à hierogamia. À união do ar divino deve corresponder, na terra, o delírio genésico ilimitado. (…) A orgia faz circular a energia vital e divina"(442). Logo, na orgia dionisíaca, juntam-se sátiros e ménades num celebração da vida que oposta à realidade olímpica. Esta dimensão erótica do culto dionisíaco está presente nas palavras de Anacreonte:
Senhor, que tens os teus folguedos
com Eros dominador, as Ninfas de olhos negros
e Afrodite purpúrea,
tu vagueias pelos cumes altaneiros das montanhas.
Eu te imploro, e tu vem propício até nós,
Escuta a prece com agrado,
sê de Cleobulo o bom conselheiro, e recebe,
ó Diónisos, o meu amor 
(Frag. 2 Diehl e Pereira, 1998: 127).
Neste fragmento, encontramos a presença de um Eros dominador que demostra que a força erótica impõe-se, mesmo que de forma contrária à vontade prudente e à temperança, e exerce o seu poder ao lado das ménades,  das Ninfas de olhos negros, e da Afrodite purpúrea. O negro da noite e o vermelho do sangue unem-se nesta simbiose radical da vida e da origem.

   Diónysos é também o deus do teatro, do ditirambo e da tragédia. Arquíloco descreve essa característica quando diz: "Sei entoar a bela melodia do príncipe Diónisos, / o ditirambo, quando o vinho deflagrou como o raio no meu espírito."(Frag. 77 Diehl e Pereira,1998: 109). O vinho e o ditirambo são expressões de Diónysos, já que a produção do último resulta da libertação levada a cabo pelo primeiro, daí que Burket diga: "A identificação do deus e do hino extático no 'ditirambo' também podem ser contadas entre estes elementos antigos"(319) e "Tanto mais importante é Dioniso para a lírica coral do arcaico tardio, para a qual o 'ditirambo', tal como a tragédia, pertence ao quadro das festas de Dioniso"(321). Porém, a relação de Diónysos e a tragédia será tratada noutro momento, até porque terá de se ter em consideração o desenvolvimento que Nietzsche lhe deu. Em suma, devemos considerar Diónysos como uma divindade extremamente complexa que pode ser caracterizada segundo vários aspectos e de acordo com diversos símbolos.



Bibliografia:
Burkert - Burkert, Walter, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, p. 318. Tradução Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 1993.
Eliade - Eliade, Mircea, Tratado de História das Religiões, p.312-3. Tradução Natália Nunes e Fernando Tomaz. Porto: Edições Asa, 1994 (1992). 
Kirk, Raven & Schofield - Kirk, G.S., J.E. Raven e M. Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, 4ª Edição. Tradução Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. 
Pereira (1997) - Pereira, Maria Helena da Rocha, Estudos de Cultura Clássica, 8ª Edição, Volume I - Cultura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997(1964).
Pereira (1998) - Pereira, Maria Helena da Rocha, Helade - Antologia da Cultura Clássica, 7ª Edição, p.127. Coimbra: Instituto de Estudos Clássicos, 1998(1959).
Fedro - Platão, Fedro. Tradução José Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1997.
Rohde - Rohde, Erwin, Psique - El Culto de las Almas y la Creencia en la Imortalidad entre los Griegos, 2 Volumes, Tradução Salvador Fernández Ramírez. Barcelona:Las Ediciones Liberales Editorial Labor, 1973.