quarta-feira, 10 de maio de 2017

O Filósofo e o Enigma

Bruegel, o Velho, Pieter, A Torre de Babel, 1563.
Viena: Museu de História de Arte.

  A máxima inscrita no templo de Delfos, Conhece-te a ti mesmo, segundo a tradição proferida pelo próprio deus Apolo, serviu de lema para a filosofia socrática, todavia Heraclito de Éfeso refere-se ao mesmo tema de uma forma mais íntima e desafiante, dizendo "Tentei decifrar-me a mim mesmo."(Heraclito: 101). Se, por um lado, a máxima de Delfos aplica-se a todos os que entrarem no templo e cumprirem a vontade do deus, por outro, o aforismo de Heraclito indica que ele é o seu próprio templo, ele é o enigma que se coloca perante si mesmo. Este é o momento inaugural de todo o filósofo, de todo o homem que procura conhecer-se, e a consciência de que somos um enigma constitui o ponto de partida de toda a investigação, na qual somos o objecto de análise.

  As palavras de Santo Agostinho vêm corroborar esta ideia, pois quando diz que "o homem é para si mesmo um desconhecido"(Agostinho 2: I, I, 3) afirma que ele é um Enigma sem resposta, mas que necessita de ser revelado, e é perante uma situação extrema que esta consciência adquire um carácter fundamental e existencial. O mesmo padre da Igreja confessa essa vivência aquando da perda de um amigo: "Eu próprio me tornara para mim uma questão magna e perguntava à minha alma porque estava triste e porque se perturbava tanto dentro de mim, e ela não sabia responder-me"(Agostinho 1: IV, IV, 9). Esta experiência está em sintonia com as palavras de Heraclito, sobretudo quando diz: "Não possível encontrar os limites da alma, nem mesmo percorrendo todo o caminho; tão profunda é a sua expressão (Logos)."(Heraclito: 45). Quando defrontado com uma experiência extrema, um acontecimento que nada nos revela ou diz, a angústia da indefinição faz com que nos tornemos numa grande questão, aparentemente sem solução, um enigma sem reposta, já que a nossa alma nada nos diz. A nossa compreensão não alcança os limites longínquos da sua expressão, é um caminho que não conseguimos percorrer, daí que Bruno Snell diga que "o que Heraclito quer expressar é que a alma, precisamente em contraposição ao corpo, é algo de ilimitado"(Snell: 41). O choque desta experiência, da tomada de consciência de que somos um enigma, pode ser confrontado com o verso de Dante: "E caí como um corpo morto cai."(Inferno, V, 142). Nesse momento passamos pela experiência da queda, não sentimos o chão que pisamos, não reconhecemos o ser que habita em nós. No entanto, o corpo não permanece caído, ele ergue-se, ele faz do enigma um desafio, e então procura levantar o véu que o cobre. É nesse instante que encontramos o terceiro desafio, já que o primeiro é o reconhecimento do eu enquanto enigma e o segundo a experiência da queda, do choque face a esse reconhecimento. Este terceiro momento é delimitado pelo caminho, pela investigação, pela procura. Aqui o homem tenta-se decifrar. Essa é a proposta de Heraclito.

  Nietzsche compreendeu esses desafios, esses três momentos, de tal forma que Zaratustra é a imagem viva dessa proposta, ele afasta-se da multidão e sobe para as montanhas, onde se encontra na solidão, onde se encontra com ele mesmo, o seu verdadeiro enigma. Este afastamento quase que parece indicar o próprio Heraclito, lembremo-nos pois das palavras de Diógenes Laércio: "E, por fim, tornou-se um misantropo e vagueou pelas montanhas, onde se alimentava de ervas e plantas."(Láercio: IX, 3). O afastamento de Zaratustra e de Heraclito não representa nada mais do que a aceitação da própria vida, a conclusão de que ela é uma enigma. No entanto, para a aceitar plenamente é preciso aceitá-la como a única referência, de forma a não ser-se influenciado por aqueles que não alcançaram essa compreensão, ou seja, o vulgo, a multidão, a maioria. Tanto para Heraclito como para Nietzsche a visão do vulgo corresponde à ignorância, ao falso saber, daí que o filósofo de Éfeso diga: "(…) Mas os outros homens não têm discernimento do que fazem quando acordados, tal como se esquecem do que fazem quando estão a dormir."(Heraclito: 1), "(…) a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular."(Heraclito: 2), sabedoria esta que não é nada, não produz nada, pois a sabedoria da parte nem sabedoria se pode chamar se não estiver inserida no todo. É a compreensão do universal que produz sabedoria. Semelhante perspectiva encontra-se em Nietzsche quando diz: "Estes estão profundamente submergidos em ilusões e visões oníricas, o seu olhar só desliza pela superfície das coisas e vê aí 'formas', a sua percepção não conduz em parte alguma à verdade mas satisfaz-se com receber estímulos e, por assim dizer, com um jogo tacteando à custa das coisas. Além disso, de noite o homem deixa-se, durante uma vida inteira, enganar em sonhos(…)"(Nietzsche 2: 216-7), o que mostra que quer para Nietzsche, como para Heraclito, a visão do vulgo é uma inadequação entre realidade e a sua compreensão, na qual estão tão iludidos como nos sonhos. Assim sendo "Um homem vale por dez mil, se for o melhor"(Heraclito: 49). É pela sua vontade, pelo seu carácter que o homem se eleva, se distingue, daí que o Efésio diga que "O carácter é para o homem um demiurgo (daimon)."(Heraclito: 119).

  A compreensão deste enigma surge ao filósofo como um acto gritante da sua vontade. É através dela que a resposta ao enigma pode ser encontrada. Píndaro diz: "O enigma que ressoa a partir dos maxilares ferozes da virgem."(Colli 1: 7 A 10) e Colli explica que "A conexão entre crueldade e enigma é aqui sugerida imediatamente pelo texto"(Colli 2: 47), isto é, o enigma aparece ao homem sob uma forma cruel, promove o sofrimento, mas, por outro lado, constitui também um desafio à vontade, enquanto aceitação da vida. Nietzsche, no posfácio ao Nascimento da Tragédia, define-se como "o cogitabundo amigo de enigmas", autor de um "livro bizarro e de difícil acesso"(Nietzsche 1: 7), definição esta que Heraclito poderia considerar para si próprio. Cícero considera-o o Obscuro, aquele que fala por Enigmas. Diógenes Laércio refere que ele colocou o seu livro no templo de Ártemis de forma a afastá-lo da compreensão vulgar da maioria e defende que ele o tornou mais enigmático de forma a que só os iniciados pudessem compreende-lo (Laércio: IX, 6). Ambas as posturas mostram duas personalidades marcadas pelo elitismo e pela valorização do enigma, apresentando-o como o método mais fidedigno de exprimir a verdade acerca das coisas. O enigma é uma verdade não demonstrada, mas sim sugerida.

  Nietzsche, n' O Livro do Filósofo, diz o seguinte: "Heraclito nunca envelhecerá. É a poesia além dos limites da experiência, prolongamento do instinto mítico; essencialmente também em imagens"(Nietzsche 3: 36/§53). Esta passagem mostra, por um lado, a profunda admiração por Heraclito e, por outro, descreve a filosofia de Heraclito como uma forma de poesia que, através de um instinto mítico expresso segundo imagens, supera os limites da experiência. Nos fragmentos de Heraclito, encontramos esta descrição quando diz: "As coisas que se podem ver, ouvir e conhecer por experiência, essas são as que eu prefiro."(Heraclito: 55) e "Más testemunhas são para os homens os olhos e os ouvidos, se tiverem almas que não compreendam a sua linguagem."(Heraclito: 107), pois ao dizer isto o filósofo grego mostra que a experiência sensorial é a que ele prefere, todavia esta exige uma compreensão da sua linguagem, do modo através do qual ela opera, modo este que para muitos homens é desconhecido. Sempre que nos deparamos com a filosofia destes dois filósofos encontramos a constatação que o conhecimento da verdadeira natureza de coisas não é propriedade de todos, para o atingir é preciso ver, ouvir e ter a experiência das coisas como elas são, e não como aparentam ser, é preciso intuir uma verdade que escapa ao olhar do vulgo, daí que o filósofo grego diga: "A verdadeira natureza das coisas gosta de se ocultar."(Heraclito: 123) ou "A harmonia que se oculta é mais forte do que a que se manifesta."(Heraclito: 54). É próprio do filósofo reconhecer a verdade que se oculta, logo sente a necessidade de se afastar do engano e da ilusão que habitam nas almas dos homens. É por isso que Nietzsche diz: "Heraclito era orgulhoso, e quando o orgulho entra num filósofo, então, é um grande orgulho. A sua acção nunca o remete para um «público», para o aplauso das massas e para o coro entusiasta dos seus contemporâneos. Seguir um caminho solitário pertence à essência do filósofo. O seu dom é o mais raro e, de certa maneira, o menos natural, excluindo e ameaçando todos os outros dons. O muro da sua auto-suficiência deve ser de diamante, para não ser destruído nem partido, porque tudo se movimenta contra ele."(Nietzsche 4: 53). Nietzsche nesta passagem descreve não só Heraclito, mas também o Filósofo, pois o Efésio é a imagem viva desse ideal, ele tem a postura, o carácter necessário. Zaratustra vai ter este mesmo orgulho que Heraclito possui e vai-se voltar para o vulgo tentando-lhe transmitir uma sabedoria que eles não possuíam, uma verdade que tem de lhes ser revelada.

  Segundo Nietzsche, Heraclito "não precisava dos homens, nem sequer para o seu conhecimento; todas as informações que deles se podiam obter ao interrogá-los e tudo o que os outros sábios antes dele tinham pesquisado não lhe interessava."(Nietzsche 4: 54). Era o oposto da filosofia socrática, o único diálogo que ele estabelecia era consigo mesmo, não existe dialéctica neste filósofo, era impossível para ele conceber a procura da sabedoria como uma discussão de âmbito dedutivo, expresso por um rigor lógico e racional. Parménides aproximar-se-ia mais dessa hipótese. Heraclito era um autodidacta, um homem que acreditava que a sabedoria está dentro de nós. Ele esperava que surgisse a decifração do enigma. A alma aguardava por uma razão divina, por um Logos que lhe desse sentido. Essa demanda pelo desvelar do enigma é própria de um amante da sabedoria, mas também de todos os homens, daí que diga "É próprio de todos os homens conhecerem-se a si mesmos e serem sábios"(Heraclito: 116), ou seja, todos os homens devem levantar o véu que esconde o Logos, que oculta a verdadeira natureza das coisas. A Verdade para Heraclito não se aprende através de um esquema dedutivo que a tornaria algo distante, algo desprovido de vida, para este filósofo a apreensão da Verdade é directa, dá-se por intermédio da intuição, daí que Jaeger diga que "O curso do mundo não é para ele um espectáculo distante e sublime, em cuja contemplação o espírito se afunda e se esquece até de submergir na totalidade do Ser. Pelo contrário, através do seu Ser passa o acontecer cósmico"(Jaeger: 223), "O logos de Heraclito é um conhecimento de onde nascem, ao mesmo tempo, 'a palavra e a acção'."(Jaeger: 225). É desta forma que Heraclito funda a filosofia no humano e constrói a primeira antropologia filosófica. O humano é um princípio de acção e esta está em sintonia com o cosmo, o humano participa dele, tal como o Logos está nele e no cosmo. Para este filósofo, o humano é fundamento de si próprio, é pela decifração de si mesmo que alcança a plenitude do seu Ser, ou seja, a consciência de que "A sabedoria é uma só: conhecer a razão, segundo a qual todas as coisas são governadas através de tudo"(Heraclito: 41), ou seja, conceber a unidade através da multiplicidade.

  A sabedoria para Heraclito decorre da acção humana. O ser humano torna-se sábio através daquilo que vê, ouve e conhece, daí que Bruno Snell diga: "Heraclito pretende dizer que os fenómenos podem respectivamente mostrar ao sábio a vida em toda a sua profundidade"(Snell: 189). A sabedoria decorre da vida e passa pela aceitação da vida. Esta noção não poderia estar mais em sintonia com a filosofia de Nietzsche, pois este defende que a vida é a expressão da vontade, contudo a vida digna de ser vivida não é a vida que a maioria vive, o que o leva o dizer: "A vida é fonte de prazer; mas onde a gentalha também beber, todas as fontes estão envenenadas"(Nietzsche 5: 110). Ora Heraclito defende o mesmo quando este diz: "Para as almas a morte é tornar-se água, para a água a morte é tornar-se terra; a água nasce da terra, e a alma da água."(Heraclito: 36), "A alma seca é mais sábia e melhor."(Heraclito: 118), ou seja, a gentalha bebe demasiada água, o que leva à morte da sua alma, a qual se torna água e por sua vez terra e então mistura-se na lama e no lodo, o que indica uma aproximação entre a alma e o corpo, entre a alma e a vida (Kahn: 245-54). Esta aproximação entre a alma e o corpo conduz também a uma aproximação da vida enquanto princípio de acção, a qual está presente em Heraclito e Nietzsche. Sobre a concepção nietzschiana deste princípio, Gilles Deleuze diz o seguinte: "O corpo é um fenómeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças irredutíveis; a sua unidade é a de um fenómeno múltiplo, 'unidade de dominação'. Num corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas activas, as forças inferiores e dominadas são ditas reactivas"(Deleuze: 63). Estas afirmações poderiam também dizer respeito a Heraclito, sobretudo na relação entre multiplicidade e unidade, mas também na distinção entre uma força que puxa para cima e outra que puxa para baixo, forças estas que são determinadas por um mesmo agente. O fragmento que diz que "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo."(Heraclito: 60) refere isso mesmo..

  A valorização da vida é descrita por Nietzsche da seguinte forma: "Todo o naturalismo na moral, isto é, toda a moral sã, está dominada por um instinto de vida - qualquer mandamento da vida é cumulado por um determinado cânon do 'deve-se' e 'não deve-se', qualquer restrição e aversão é assim eliminada do caminho da vida."(Nietzsche 6: 40-41). A vida é regulada pela vontade e não por normas estabelecidas, logo o ser humano age conforme a sua natureza. Neste ponto nota-se uma diferença entre Nietzsche e Heraclito, pois quando este último diz "O povo deve lutar pela Lei, como se da muralha da cidade se tratasse."(Heraclito: 44), revela uma defesa de um carácter normativo e legislativo, pois as leis são o fundamento da nossa segurança, tal como o é a muralha da cidade. Desta forma, o filósofo aparece-nos como aquele que tem consciência de si mesmo, enquanto enigma, e que toma esse enigma como expressão de vida. O filósofo afasta-se do vulgo como se de uma peste se tratasse, pois o pensamento da maioria corrompe a comunhão com a verdade, com a verdadeira natureza das coisas. O Enigma coloca-se perante ele como uma expressão da vida e como um desafio para a vontade. São estes aspectos que fazem com que Heraclito e Nietzsche estejam tão próximos um do outro, daí que Colli ao falar de A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos diga: "Este escrito documenta, por conseguinte, um processo de amadurecimento, o início de uma conquista de autonomia por parte de Nietzsche: em relação a Wagner, com a substituição da arte pela filosofia, o vértice da cultura, e em relação a Schopenhauer, com a sua substituição por Heraclito como ideal de filósofo."(Colli 3: 32). Ora Cornford  refere que "Heraclito reivindica uma inspiração sem par que suplanta todos os poetas, profetas e sábios do passado e seu contemporâneos"(Conford: 189-9). Esta inspiração é produto de si mesmo e do Logos que está em tudo e dá razão a tudo. Foi esta altivez e esta consciência de si mesmo como homem superior, um homem que vê o que os outros não vêm, que agradou tanto a Nietzsche e que inspirou o seu Zaratustra, que era tanto o alter ego do Filósofo como imagem de Heraclito.

  A melhor forma de sintetizar o que foi tratado ao longo deste ensaio é com uma citação de Píndaro: "Tenho ainda debaixo do braço muitas setas agudas,/ que estão dentro da aljava,/ compreensíveis aos cultos; para o vulgo, é preciso/ hermeneutas. Artista é aquele/ que sabe muito por natureza. Os que tiveram de aprender,/ quais corvos loquazes,/ que grasnam em vão contra a ave divina de Zeus"(Pereira: 187). Estes versos mostram o carácter elevado do conhecimento em causa, apreendido de modo directo, o desprezo pelo vulgo e pelo seu pretenso saber e, por fim, a revelação de que o enigma não pode ser apreendido por todos, só o alcança aquele que tiver um carácter que lhe sirva de intermediário entre o plano ignorante dos seres humanos e o plano sábio dos deuses.


Bibliografia:
Agostinho 1 - Santo Agostinho, Confissões. Tradução Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel. Lisboa: INCM, 2000.

Agostinho 2 - Santo Agostinho, De Ordine. Tradução Paula Oliveira e Silva. Lisboa: INCM, 2000.

Colli 1 - Colli, Giorgio, La Sapienza Greca, 4ª Edição, Volume I - Dioniso-Apolo-Eleusi-Orfeo-Museo-Iperborei-Enigma. Milão: Adelphi Edizioni,1987(1977).

Colli 2 - Colli, Giorgio, O Nascimento da Filosofia. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s/d.

Colli 3 - Colli, Giorgio, Escritos sobre Nietzsche. Tradução Maria Filomena Molder. Lisboa: Relógio D'Água: 2000.

Cornford - Cornford, F.M., Principium Sapientiae - As Origens do Pensamento Filosófico Grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.

Dante - Dante, Divina Comédia, 5ª Edição. Tradução Vasco Graça Moura. Venda Nova, Bertrand Editora, 2000.

Deleuze - Deleuze, Gilles, Nietzsche e a Filosofia, 2ª Edição. Tradução António M. Magalhães. Lisboa: Rés Editora, 2001.

Kahn - Kahn, Charles H., The Art and Thought of Heraclitus - An Edition of the Fragments with Translation and Commentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

Heraclito - Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995(1986).

Laércio - Diógenes Laércio, Lives of Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução R.D. Hicks. Londres e Cambridge: The Loeb Classical Library, 1958(1925).

Nietzsche 1 - Nietzsche, O Nascimento da Tragédia. Tradução Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Acerca da Verdade e da Mentira em Sentido Extramoral, opúsculo  presente na edição de O Nascimento da Tragédia.

Nietzsche 3 - Nietzsche, O Livro do Filósofo (1872). Tradução Ana Lobo. Lisboa: Rés Editora, s/d.

Nietzsche 4 - Nietzsche, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873). Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Nietzsche 5 - Nietzsche, Assim Falava Zaratustra - Um Livro para Todos e Ninguém (1883). Tradução Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D' Água, 1998.

Nietzsche 6 - Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos ou Como se Filosofa com o Martelo (1888). Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.

Pereira - Pereira, Maria Helena da Rocha, Helade - Antologia da Cultura Clássica, 7ª Edição. Coimbra: Instituto de Estudos Clássicos, 1998(1959).

Snell - Snell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Giordano Bruno, a sua Obra e a sua Sentença

Estátua de Giordano Bruno, Campo di Fiori, Roma.

  Giordano Bruno, o filósofo que foi condenado à fogueira pela Inquisição e que morreu, em agonia, a 17 de Fevereiro de 1600, afirmou o seguinte perante os seus alcozes: "Maiori forsan cum timore sententiam in me furtis quam ego accipium" (Será maior o vosso temor em pronunciar esta sentença que o meu em aceitá-la). A acusação de Bruno sustentava-se em oito acusações de heresia: crença que a transubstanciação do pão em carne e do vinho em sangue era falsa; crença que o nascimento virginal era impossível; sustentar opiniões contrárias à fé católica e contestar os seus ministros; sustentar opiniões contrárias à fé católica sobre a Trindade, a divindade de Cristo e a encarnação; sustentar opiniões contrárias à fé católica sobre Jesus como Cristo; convicção que vivemos num universo infinito e que existem inúmeros mundos, nos quais criaturas como nós podem viver e venerar os seus próprios deuses; acreditar na metempsicose e na transmigração da alma humana para seres inferiores; e o envolvimento em magia e adivinhação.

  Não se pode dizer que as acusações tinham a mentira na sua génese, no entanto, a liberdade que Giordano Bruno atribuía à sua capacidade de inquirir e de indagar era a mesma liberdade que fluía nas suas teses, logo o seu pensamento não podia percorrer outra via que não fosse aquele de quem era inimigo do paradigma vigente. A oposição ao comum tem sempre um preço a pagar. Giordano Bruno, antes de morrer na fogueira, esteve preso de 23 de Maio de 1592 até 17 de Fevereiro de 1600, quase oito anos. Se o Renascimento começou com Nicolau de Cusa, terminou com Giordano Bruno. A sua filosofia dinâmica pode não ser genial, mas representa uma transformação no pensamento que se desenvolverá até ao Iluminismo e nalguns aspectos foi radicalmente inovadora. A sua concepção de um universo infinito e o seu esboço de uma teoria da relatividade, bem como a sua independência face à filosofia natural de Aristóteles, deixaram marcas que influenciaram os tempos que a ele se seguiram.

  O Nolano tornou-se um exemplo das consequências da intolerância e do quanto a liberdade de expressão é uma necessidade. A condenação de Giordano Bruno é hoje uma imagem do perigo das ruínas do pensamento, quando a fé se torna num incêndio que consome a humanidade. É também que salientar que um dos seus algozes, o mesmo que também esteve no julgamento de Galileu, Roberto Belarmino, tornou-se santo em 1930, pela mão de Pio XI. Quando a liberdade é ferida, Bruno é a memória do que deve ser um ponto de não retorno. A autoridade não pode nunca minar a liberdade de pensar e a liberdade de expressão.   

Obra em Italiano:
  • Candelaio, 1582;
  • La cena de le ceneri, 1584;
  • De la causa, principio e uno, 1584;
  • De l'infinito, universo e mondi, 1584;
  • Spacio de la bestia trionfante, 1584;
  • Cabala del cavallo Pegaseo con l'aggiunta dell'Asino Cillenico, 1585;
  • De gli eroici furori, 1585.                                                                                            
Obra em Latim:
  • De umbris idearum, 1582;
  • Cantus Circaeus ad memoriae praxim ordinatus, 1582;
  • De compendiosa architectura et complemento artis Lullii, 1582;
  • Explicatio triginta sigillorum et Sigilli sigillorum, 1583;
  • Figuratio aristotelici physci auditus, 1586;
  • Dialogi duo de Fabricii Mordentis Salernitani prope divina adinventione, 1586;
  • Dialogi. Idiota triumphans. De somnii interpretatione. Mordentius. De Mordentii circino, 1586;
  • Centum et viginti articuli de natura et mundo adversus Peripateticos, 1586;
  • De lampade combinatoria lulliana, 1587;
  • De progressu et lampade venatoria logicorum, 1587;
  • Oratio valedictoria, 1588;
  • Camoeracensis Acrotismus seu rationes articulorum physicorum adversus Peripateticos, 1588;
  • De specierum scrutinio et lampade combinatoria Raymundi Lullii, 1588;
  • Articuli centum et sexaginta adversus huius tempestatis mathematicos atque philosophos, 1588;
  • Oratio consolatoria, 1589;
  • De triplici minimo et mensura, 1591;
  • De monade, numero et figura, 1591;
  • De innumerabilibus, immenso et infigurabili, 1591;
  • De imaginum, signorum et idearum compositione, 1591;
  • Summa terminorum metaphysicorum, 1609;
  • Artificium perorandi, 1612;
  • Animadversiones circa lampadem lullianam, 1586;
  • Lampas triginta statuaram, 1591;
  • Libri physicorum Aristotelis explanati, 1588;
  • De magia, 1589-1590;
  • Theses de magia, 1591;
  • De magia mathematica,1589-1590;
  • De rerum principiis, elementis et causis, 1589-1590;
  • Medicina lulliana, 1589-1590;
  • De vinculis in genere, 1591;
  • Praelectiones geometricae, 1591;
  • Ars deformationum, 1591.
Obra Completa de Giordano Bruno: http://bibliotecaideale.filosofia.sns.it/index.php

Obras Traduzidas para Português:
  • Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos, 6ª Edição, 2011. Introdução de  Victor Matos e Sá e tradução, notas e bibliografia de Aura Montenegro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
  • Tratado de Magia, 2007. Introdução, tradução e notas de Rui Tavares. Lisboa: Tinta da China.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Acerca dos Signos Masculinos e Femininos segundo Ptolomeu (Excerto)

Ptolomeu
(c.90 E.C. - c.168 E.C.)


Tetrabiblos, I, 12.

Acerca dos Signos Masculinos e Femininos


  Uma vez mais e de igual forma, elegeram seis dos doze signos como sendo de uma natureza masculina e diurna e, em igual número, como de uma feminina e nocturna. Uma outra regra foi-lhes atribuída, pois o dia desperta sempre da noite e próxima dela, tal como a fêmea do macho. Assim, por as razões já mencionadas, Carneiro é considerado o ponto de origem e, como o macho também governa e detém o primado, uma vez que, em força, o activo é sempre superior ao passivo, os signos de Carneiro e Balança são designados como masculinos e diurnos. Simultaneamente, uma outra razão detém-se no facto de que o círculo equinocial, delineado através deles, completa o primeiro e mais poderoso movimento de todo o universo. Os signos que a eles se sucedem, tal como já afirmámos, correspondem a uma outra disposição.

  No entanto, outros refutam esta regra dos signos masculinos e femininos, defendendo que o masculino começa no signo ascendente, designado por Horóscopo. Do mesmo modo que, para alguns, os signos solsticiais iniciam-se no signo lunar, uma vez que a Lua muda de direcção de uma forma mais rápida que os restantes. Desta forma, inauguram os signos masculinos com o Ascendente (Horóscopo), pois é aquele que está  mais a Leste, ora alguns, como já referido, recorrem a uma regra alternada de signos e outros dividiram-nos pelos quadrantes, designando como matutinos e masculinos os signos do quadrante que vai do Ascendente (Horóscopo) ao  Meio do Céu e aqueles do quadrante oposto, do Descendente ao Fundo do Céu (Fundo da Terra ou Baixo Meio do Céu), e os dos outros dois quadrantes como vespertinos e femininos. 

  Acrescentaram também outras descrições aos signos, resultantes da sua representação. Refiro-me, por exemplo, a "de quatro patas", "terrestres", "dominantes" e ""férteis", bem como de outras ordens similares. Estas, dado que a sua razão e significado derivam directamente de  si, consideramos supérfluas de elencar, visto que a qualidade das configurações pode ser expressa nas previsões, se se revelar relevante e útil.

Tradução do Grego RMdF


Edições Utilizadas:
  • Hübner, Wolfgang, Claudii Ptolemaei opera quae exstant omnia, Vol. 3, 1, Apotelesmatika. Estugarda e Leipzig: B. G. Teubner, 1998, pp. 48-51.
  • Robbins, Frank Eggleston, Ptolemy - Tetrabiblos. Cambridge (Mass.) e Londres: Harvard University Press e William Heinemann Ltd., 1964, pp. 68-71.


Comentário

  A leitura atenta do Tetrabiblos pode muito bem representar o marco entre um astrólogo sério, que prefere o estudo às opiniões vãs, e o astrólogo que se sustenta na fama dos seus mestres e no conhecimento opinativo, desprovido de rigor e sem um sistema de sentido coerente e aprofundado. Desde que foi escrito, entre os anos 145 e 168 da Era Comum, foi a obra astrológica mais citada e que serviu de base para todos os desenvolvimentos futuros. Até meados do Século XVII, o conhecimento  astrológico, expresso por Ptolomeu, ainda era ensinado nas universidades. 

  No início do Tetrabiblos, o sábio grego descreve o seu propósito inaugural, estabelecer um sistema de "astronomías prognôsticón", ou seja, tecer prognósticos ou previsões a partir do conhecimento astronómico. A astrologia é um processo de transferência de sentido entre os efeitos do universo na humanidade e no seu mundo e a sua interpretação, daí que a astrologia seja uma forma de linguagem. Esta definição de astrologia pode ser aplicada ao tempo de Ptolomeu se tivermos em consideração que a astronomia/astrologia era uma ciência que pertencia ao domínio da filosofia natural, logo antes de ser ciência era uma linguagem filosófica. Por outro lado, a astrologia, como forma de analisar o humano enquanto categoria filosófica, é uma síntese da psicologia clássica, daí que se diga que existe uma simbiose entre o Almagesto e o Tetrabiblos. Se um procura o fenómeno, o outro detém-se no valor do fenómeno e no modo como se relaciona com o humano.

  A questão textual é também de suma importância, pois, apesar de não termos um manuscrito do Tetrabiblos da época em que foi escrito, as citações e versões posteriores vêem corroborar o seu valor e a sua importância. Heféstion de Tebas, cerca de duzentos anos após a morte de Ptolomeu, cita-o com frequência e faz da sua obra, juntamente com a de Doroteu de Sidon, as suas principais referências. Aliás a sua obra, Apotelesmatika, e as suas citações do Tetrabiblos servem ainda hoje para validar e verificar traduções e versões posteriores. A primeira das quais, pelo menos a primeira que merece nota, é a de Hunayn ibn Ishaq, datada do século IX. O Califa Abássida al-Ma'mūn colocou Hunayn ibn Ishaq como responsável da Casa da Sabedoria, Bayt al Hiknak, um centro cultural em Bagdad, que é hoje representativo da Era de Ouro Islâmica e onde os textos gregos eram traduzidos para sírio e árabe. Foi, sobretudo, este esforço de preservação da sabedoria clássica que permitiu que hoje tenhamos acesso aos textos, bem como possibilitou o neoclassicismo do Renascimento. 

  A Paráfrase de um Pseudo-Proclo, escrita no século V e da qual existe um manuscrito do século X, é o mais antigo elemento textual completo que dispomos e, embora seja uma apresentação simplificada do texto original, foi predominante onde as versões do árabe tiveram menor presença. Por outro lado, a presença árabe na Península Ibérica permitiu a tradução para latim da obra de Ptolomeu. A primeira tradução que se conhece que foi elaborada por Plato de Tivoli e Gerardo de Cremona, em Barcelona, no ano de 1138. Em 1206, foi feita uma nova tradução a partir de fontes árabes, mas de autor anónimo. Do grego para o latim, é de salientar a tradução de Hermann da Dalmácia e, no século XIII, também tem de se referir a de Aegidius de Thebaldis. A maioria das edições que circulavam, tanto no mundo árabe como na cristandade, incluíam o comentário do século XI de Ali ibn Ridwan. Foi este imperioso esforço de tradução e a vontade de conhecimento que levou a que, no século XVI, o Tetrabiblos fosse levado à estampa, por Camerarius no ano de 1535, em Nuremberga, e no de 1553, em Basileia, e por Junctinus no ano de 1581, em Leiden.

  Em vernáculo, a primeira tradução que se conhece é francesa e foi realizado sob o patrocínio de Carlos V. Desta tradução, existe um manuscrito que data de 1363. Apesar de não se conhecer, na Península Ibérica, uma tradução para castelhano ou português, o trabalho da Escola de Toledo produziu, a mando de Afonso X, uma súmula, Libros del Saber de Astronomia, com os contributos de astrónomos/astrólogos árabes, judeus e cristãos que relavam o conhecimento e influência do Tetrabiblos. É também de frisar que esta obra foi oferecida por Afonso X ao seu neto, o rei D. Dinis de Portugal. O Tetrabiblos cedo se tornou a bíblia da astrologia e a sua importância só foi mitigada no século XIX, em pleno domínio positivista, quando a sua autoria foi posta em causa, pois o racionalismo totalitário não permitia que uma obra de astrologia fosse da autoria de Ptolomeu, um cientista. Foi esse mesmo obscurantismo que fez com que astrologia fosse purgada da vida e obra de homens como, por exemplo, Kepler ou Newton.

  Outro aspecto textual de relevo é o título. A obra comummente conhecida como Tetrabiblos ou, pela versão latina, Quadripartitum, aponta para o número de livros que o compõem, quatro. Porém, na introdução, Robbins indica o que seria o seu título completo, isto porque ele não é indicado pelo autor. Segundo Robbins, o título mais adequado seria: Mathematikê Tetrábiblos Sýntaxis, ou seja, Tratado de Matemática em Quatro Livros. Este título revela a proximidade conceptual entre a astrologia e a matemática, que, na esteira de Platão, é condição para a aprendizagem da filosofia. No entanto, Hübner, a partir da primeira frase do tratado, "tó pròs Sýron apotelesmatiká", propõe o título Apotelesmatika, que aliás é comum a várias obras de astrologia, designando um tratado acerca do efeito das estrelas no destino humano.

  O capítulo aqui traduzido revela uma escolha, um modo de representar a forma como a astrologia interpreta a realidade. O masculino e o feminino indicam, nesta passagem, o processo de tradução da polaridade natural para uma estrutura de sentido. Os opostos podem apresentar-se tanto como elementos metafísicos, como princípios naturais, daí que a análise dos signos masculinos e femininos não se limite à presunção biológica de macho ou fêmea. A astrologia divide os signos tal como a realidade separa as naturezas contrárias, almejando encontrar a sua harmonia. Porém, a vinculação de um signo a um género não é nem simples, nem redutora, uma vez que são as especificidades de um signo que definem a sua natureza masculina ou feminina. Por exemplo, o eixo equinocial (hisêmerinós), expresso pelos signos de Carneiro e Balança, assume uma natureza masculina, todavia a expressão masculina de Carneiro e Balança é distinta. Marte, um planeta masculino, em Carneiro, está no seu domicílio diurno, mas, em Balança, está em exílio, logo a sua expressão masculina é débil, pois é regido por Vénus, um planeta feminino. O mesmo pode ser aplicado ao eixo solsticial (tropikós), uma vez que Marte esta em exaltação em Capricórnio e em queda em Caranguejo, ambos signos femininos. Desta forma, podemos dizer que a natureza dominante, leia-se, segundo o texto, masculina, é mais forte em Capricórnio, embora feminino, que em Balança. Daqui se depreende que as categorias masculino e feminino não se reduzem a uma mera atribuição linear.

(...)
Fim do Excerto
  

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Do Baú IX: Nemrod: Um Fragmento

Nemrod: Um Fragmento
2013/XI/06

Gustave Doré, "Nimrod and his horn", Dante Alighieri's Inferno
(New York: Cassell Publishing Company, 1890).
Citação:

Poi disse a me: «Elli stessi s'acussa;

questi è Nembrotto per lo cui mal coto

pur un linguaggio nel mondo non s'ua.

Lasciànlo stare e non parliamo à vòto;

ché cosí è a lui ciascun linguaggio

come 'l suo ad altrui, ch'a nullo è noto.»

Dante, Divina Comédia, Inferno, XXXI, 76-81

Fragmento

Em cada língua que o seu espaço ocupa,
 o vazio é a argamassa de uma torre que se ergue. 
Babel sobe e a Palavra afunda-se.

Do Baú VIII: A Máxima de Bartleby: “Prefiro não o fazer”

A Máxima de Bartleby: “Prefiro não o fazer”
2013/III/15
Danhauser, Josef Franz, Siesta (The Sleepers), 1831.
 Budapeste: Szépmûvészeti Múzeum,
Melville, em Bartleby, o Escrivão, expressou uma categoria filosófica que pode também ser entendida como um modo último de vida. A impotência, a não-potência, o acto de contrariar a acção impõe-se como possibilidade, como uma permanência na possibilidade. O dizer "Prefiro não o fazer" é o baluarte supremo da resistência, revela que pode, mas prefere não o fazer. Existe aqui uma deliberação, uma escolha que, embora impeça o acto, a realização, não deixa de ser activa.  
Agamben, no ensaio "Sobre o Que Podemos Não Fazer" (57-9), diz que "o homem é, por conseguinte, o ser vivo que, existindo sob o modo da potência, pode tanto uma coisa como o seu contrário, trate-se de fazer ou de não fazer" (58). A potência, a dinâmica que exige o acto, que força a realização vê na impotência uma forma de resistência, de contrário. Melville escreve: "de início, Bartleby produziu uma enorme quantidade de escrita. Como se estivesse faminto de copiar, parecia empanturrar-se com os meus documentos. Não havia pausas para a digestão. Trabalhava dia e noite, sem parar, copiando à luz do Sol ou de uma vela. Eu ter-me-ia deliciado com a sua aplicação caso a sua diligência fosse animada. Mas ele escrevia em silêncio, sem brilho, mecanicamente" (31). Nesta passagem, podemos destacar alguns aspectos: em primeiro lugar, o verbo copiar, Bartleby não cria, não gera, copia, transporta, de um lado para o outro, o texto já existente; em segundo lugar, o trabalho contínuo, a acção sem suspensão, sem alternância; e, em terceiro lugar, a mecanicidade do acto de copiar, o silêncio que é a repetição do mesmo, o brilho que falta, a alegria que está ao ausente. É face a este trabalho que Bartleby opta por não o fazer, por se recusar, constantemente, a desempenhar as acções solicitadas pelo patrão, que diz "tivesse eu notado o mais pequeno desassossego, zanga, enfado ou impertinência na sua atitude, por outras palavras, tivesse existido o mínimo vestígio de humanidade nele, sem dúvida que o teria expulsado com violência das minhas instalações" (33). Bartleby, no seu acto de não fazer, anula-se como humano, priva-se de sentir. O escrivão repete a não-dinâmica, a impossibilidade que a sua escolha gerou. Em última análise, Bartleby cria pela primeira vez, do seu acto criativo produz a não-acção.
Esta máxima é extremamente perigosa para a ordem social, pois, por um lado, implica um acto axiológico, uma atribuição de valor, e, por outro, rejeita o valor que confere à realidade, afasta-se dela, distancia-se, escolhe não intervir. Esta impotência é o estágio último de uma greve de zelo. O trabalhador cumpre o dever de estar no local de trabalho, mas não executa os procedimentos solicitados. No entanto, a sua postura não é de provocação, é sim de negação. Pensamos, com frequência, que a resistência está na acção, no movimento, todavia, esta forma de resistência é desconcertante, priva a realidade do seu sentido, pois não é reacção, luta de contrários, é um revogar deliberado da possibilidade de fazer, o que põe em causa a interacção social. 

         Bartleby, o Escrivão de Melville e "Sobre o que Podemos Não Fazer" de Agamben são duas leituras interessantes que nos abrem a mente para um outra possibilidade.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

O Número de Casamentos segundo Doroteu de Sidon

Doroteu de Sidon
(Século I da E.C.)
Pentateuco 
Ou
Carmen Astrologicum
Livro II, 5
Acerca do Número de Casamentos

Pingree, David (Ed.),
Dorothei Sidonii Carmen Astrologicum, p. 50.

Se se desejar saber com quantas mulheres vai um homem casar, então deve-se marcar do Meio do Céu até Vénus, o número de planetas que estiver entre os dois indica o número de mulheres com quem irá casar, porém, sempre que se encontrar Saturno, deve-se esperar frieza e tensão, e se se encontrar Marte, deve-se esperar a morte, a menos que sobre ele existam aspectos benéficos. Nas natividades das mulheres, se se desejar saber com quantos homens vai casar, então deve-se contar do Meio do Céu até Marte, mas se Marte estiver no Meio do Céu, deve-se contar do Meio do Céu até Júpiter, o número de planetas que estiver entre os dois indica o número de homens com quem vai casar. Se, a partir do Meio do Céu, Vénus estiver cadente, pode-se dizer que existirá pouca constância do homem para com as mulheres, o mesmo se pode afirmar em relação às mulheres se Marte estiver na sétima.

(...)

Doroteu de Sidon, Carmen Astrologicum, II, 5.  Tradução RMdF.


Versão Utilizada:
Pingree, David (Ed.), Dorothei Sidonii Carmen Astrologicum. Leipzig: Teubner, 1976, p. 50 e 204.


 Comentário

   Em teoria, o método apresentado por Doroteu de Sidon sustenta-se num modelo formal e material válido e plausível, todavia a verificação dos seus pressupostos permite que se estabeleçam algumas inconsistências. Em primeiro lugar, deve-se ter em consideração que o modelo é  constituído apenas por sete astros (Sol, Lua, Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno, isso se o Sol e a Lua forem incluídos na designação de planeta), pois Úrano, Neptuno e Plutão ainda não haviam sido descobertos e, uma vez que a astrologia tradicional se fundamenta no que é observável pelo olhar humano, também não devem  ser considerados. Dos sete astros, ainda temos de reduzir um, Vénus para os homens e Marte ou Júpiter para as mulheres. Desta forma, só existem seis astros disponíveis e, como a probabilidade de estarem todos ou quase todos entre o Meio do Céu e o respectivo planeta é limitada, então o número de casamentos possíveis está restringido a um valor pequeno. 

   Este aspecto levanta alguns problemas, sobretudo em casos como, por exemplo, o de Elizabeth Taylor, que casou oito vezes, embora duas delas com Richard Burton. Ora Elizabeth Taylor  tem o Meio do Céu a 14° de Balança e Marte a 1° de Peixes e entre eles estão apenas a Lua e Saturno. Apesar do elemento quantitativo, descrito por Doroteu de Sidon, não se verificar neste caso, o valor do sentido não deixa de ser relevante, pois, por um lado, a presença da Lua e de Saturno aponta para instabilidade emocional e relacional na vida de Elizabeth Taylor como, por outro lado, permite que se estabeleçam interpretações que vinculam, por exemplo, a Lua em Escorpião com a morte de Michael Todd, seu terceiro marido, e a dor dessa perda, bem o peso das dívidas herdadas, e, noutro exemplo, o Saturno em Aquário com a relação tempestuosa com Richard Burton, onde a liberdade emocional de Taylor foi restringida, de tal modo que iniciou uma relacionamento extraconjugal com o Embaixador Iraniano Ardeshir Zahedi. Desta forma, embora o elemento quantitativo produza inconsistências, o valor material e significativo permite que o contributo de Doroteu de Sidon continue actual.

   Um outro aspecto que também deve ser considerado é a natureza do conceito de casamento, que evoluiu ao longo dos tempos. Neste quadro interpretativo de Doroteu de Sidon, deve-se estabelecer como premissa a natureza dos relacionamentos a considerar, onde um mero pressuposto legal pode não ser suficiente. Por exemplo, até ao Sinodo de Whitbey, em 664 E.C., os povos da antiga Bretanha praticavam um casamento, Handfasting, que era celebrado por um ano e um dia, após esse período os esposos decidiam se este continuava ou não. A consumação também pode ser um requisito prévio para constar no número estabelecido por Doroteu de Sidon, bem como qualquer forma de relacionamento íntimo que implique a vida em comum. Ou, por outro lado, deve-se enumerar apenas aqueles que se estabeleceram numa base afectiva genuína?  Esta questão é de suma importância, pois é a sua resposta que permite atestar a veracidade do método proposto.

   Por fim, a questão textual e acerca das fontes também merece alguma atenção. Doroteu de Sidon terá escrito a sua obra entre os anos 25 e 75 da nossa era e, embora fosse originário de Sidon, uma parte significativa da sua vida terá sido passada em Alexandria. O Carmen Astrologicum ou Pentateuco é um texto sobre astrologia, escrito em verso, e que se destaca por ter sido o primeiro texto de que se conhece a incluir as katarchai, as Interrogações ou Eleições, as quais se tornaram em importantes indicadores da actividade dos astrólogos e dos motivos que levavam as pessoas a procurá-los. Doroteu distinguiu-se também de Ptolomeu por incluir as Partes na sua obra. O Carmen Astrologicum tornou-se num texto importante que serviu de fonte para, por exemplo, Heféstion de Tebas e Firmicus Maternus. No Catalogus Codicum Astrologorum Graecgrum (CCAG), podemos encontrar cerca de trezentos fragmentos da obra de Doroteu de Sidon, que serviram de fonte directa para os seus textos, mas foi a partir da edição de David Pingree que pudemos aceder à maioria do Carmen Astrologicum. Essa edição sustenta-se em primeiro lugar nas versões de Abû Hafs 'Umar ibn Farrukhân Tabarî, conhecido no ocidente como Omar Tiberiades, que datam de 800 E.C. e baseiam-se numa tradução pahlavi, ou seja, persa, do século III. Existe também uma outra versão árabe, de cerca de 770 E.C., com um carácter  fragmentário e atribuída a Māshā'allāh, onde encontramos textos que não estão na versão de al Tabarî, mas que estão, em parte nos fragmentos do CCAG. Foi esta concórdia de fontes que permitiu que hoje seja possível aceder à maior parte do Carmen Astrologicum.

   Em suma, a obra de Doroteu de Sidon merece ser lida e pode contribuir para uma fundamentação da linguagem astrológica, que hoje tem uma natureza líquida, dispersa e sem um sistema de sentido que lhe dê forma. A astrologia clássica permite um rigor que na astrologia contemporânea nem sempre existe e a análise ao número de casamentos de Doroteu de Sidon fornece-nos um indicador de estudo que não deve ser desprezado. A sabedoria está em quem procura. 

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Do Baú VII: A Remissão do Humano

A Remissão do Humano
2016/VIII/17

Poussin, Nicolas, Eco e Narcisso, 1628-30. Paris: Museu do Louvre. 

   Vivemos numa era dominada por um paradoxo radical que indica que quanto maior é o individualismo, mais débil é a noção de humano e de humanidade. O Eu, a personalidade, engrandece e a consciência de si ou enfraquece ou não chega a ser alcançada. O humano como categoria está em remissão.

   O individualismo tolhe o humano, porque se impõe ao mundo, sem nada dar e sem nada receber. É uma projecção do eu que se julga mais do que verdadeiramente é. Jung diz que "tal como tendemos a assumir que o mundo é como o vemos, nós supomos inocentemente que as pessoas são como as imaginamos. (...) Todos os conteúdo do nosso inconsciente estão constantemente a ser projectados no meio que nos rodeia (...) Cum grano salis, nós vemos sempre os nossos erros inconfessados no nosso oponente" ("General Aspects of Dream Psychology", CW 8, 1972, par. 507). Aquilo que, por demasiadas vezes, tomamos como certo, como facto, como realidade não é mais que uma explosão de subjectividade, ou seja, vertemos aquilo que somos e que, na maior parte das vezes, desconhecemos num determinado objecto, projectamos o nosso eu em algo que passa de ser o que é para ser uma continuidade de nós. A maioria destes fenómenos ocorrem salutarmente e servem de base para o processo gnoseológico e para a criação de estruturas relacionais entre o sujeito e o outro e entre o sujeito e o mundo. No entanto, o individualismo e o exacerbamento do eu transgridem a natureza relacional e transformam-se numa dinâmica bélica. O Eu, sem consciência de si, invade o mundo, subjuga o outro e impõe o seu domínio e, quando o faz, debilita o humano e anula a sua humanidade.

   Segundo Freud, o narcisismo, numa abordagem primária, apresenta-se como complemento libidinal do egoísmo face ao instinto de preservação. Ora as estruturas primitivas do eu, em momentos de crise de identidade, tornam-se dominantes, daí que, por instinto territorial, se transforme a auto estima em narcisismo. Frases como "não quero saber que os outros não gostem de mim, eu gosto", "eu sou assim", "quem não gosta, ponha na borda do prato", "eu é que sei", "não quero saber o que pensam de mim" revelam traços infantis e narcisistas que, numa idade em que já não fazem sentido, podem originar uma megalomania patológica. Freud, na sua introdução ao narcisismo (Zur Einführung Des Narzissmus, 1914), aponta essa passagem do objecto da libido, em especial a mãe, do Self para a realidade social, ora é nesta projecção que a personalidade considera o mundo o seu domínio, tal como a criança vê a mãe como sendo apenas sua e sente ciúmes, senão mesmo raiva, quando alguém dela se aproxima. O narcisismo primitivo da criança não permite a partilha da progenitora. Porém, a criança cresce e é suposto que o seu desenvolvimento altere este comportamento. Quando um adulto continua a revelar estes comportamentos narcisistas, mesmo que o foco já não seja a mãe, mas sim a sua personalidade, o seu lugar na realidade social, podemos considerar que esse indivíduo sofre de uma perturbação.

   O transtorno de personalidade narcisista, inscrito no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM - IV), é marcado por uma componente dramática e emotiva, de carácter extremamente egocêntrico, o que faz com que seja difícil de diagnosticar por parte dos terapeutas. O narcisista não consegue ou tem relutância em admitir que tem um problema. Este transtorno pertence à categoria dos transtornos borderline e antissocial. Numa perspectiva filosófica, o narcisismo é uma negação do humano, pois a consciência da nossa humanidade é alcançada pela compreensão e aceitação dos nossos limites, e o narcisista acredita não ter limites, ou se os tem estão num patamar superior aos dos demais. A sintomatologia do narcisista passa, primeiro, por uma grande necessidade de atenção - "olhem todos, vejam o que eu fiz" -, conjugada quase sempre por estado de arrogância, e depois por uma expectativa de reconhecimento, todavia, os atributos de base não correspondem ao que foi executado. É, neste ponto, que o transtorno de personalidade narcisista se pode relacionar com a síndrome de Dunning-Kruger. No artigo "Unskilled and Unaware of It: How Difficulties in Recognizing One's Own Incompetence Lead to Inflated Self-Assessments " (Journal of Personality and Social Psychology, 1999, Volume 77, Número 6, pp.1121-1134 ), os psicólogos David Dunning e Justin Kruger estabelecem uma relação entre a estupidez ou a ignorância e a vaidade. A partir do estudo da amostra, foi possível fixar dois princípios fundamentais: primeiro, os indivíduos incompetentes tendem a sobrevalorizar as suas próprias habilidades e, segundo, os indivíduos incompetentes são incapazes de reconhecer as verdadeiras habilidades dos outros. Estes dois aspectos da síndrome de Dunning-Kruger reforçam a inveja como sintoma primordial do transtorno de personalidade narcisista, pois neste caso a inveja é crónica e basilar, o indivíduo não só nutre uma inveja desproporcional pelos outros, pelo que outros são e fazem, como também acredita que é alvo de inveja, de inveja constante e permanente. A obsessão pela genialidade, pela beleza, pela riqueza, pela fama impedem-no de criar empatia, uma vez que a crença na sua superioridade obriga a uma exigência de tratamento preferencial e especial, tornando-o inevitavelmente arrogante.

   Erich Fromm diz que "o narcisismo é a essência de todas as patologias psíquicas graves. Para a pessoa envolvida narcisisticamente, existe apenas uma realidade, a sua, determinada pelos seus processos, sentimentos e necessidades. O mundo exterior não é experienciado ou percepcionado objectivamente, isto é, não existe nos seus próprios termos, condições e necessidades. A forma mais extrema de narcisismo pode ser encontrada em todas as formas de insanidade" (The Sane Society, 2ª Edição, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2002, p.34). A sociedade actual criou um conjunto de exigências e de processos de validação social que cultivam o narcisismo. O culto da imagem, a idolatria do corpo, corrompe as estruturas interrelacionais, pois julgamos o outro, atribuímos-lhe um patamar qualitativo, consoante a sua imagem, o seu corpo, em acordo com o paradigma em vigor. O gordo, segundo os narcisistas, tem menos valor social que o magro. A indumentária e os adornos, a tecnologia que se ostenta, as fotografias que se exibem, o emprego que se tem, as férias e as viagens que se fazem, tudo serve para avaliar o outro. Porém, existe uma grande dificuldade em compreender o outro pela sua humanidade. A aceitação do outro pelos seus limites implica a aceitação dos nossos próprios limites e isso é um processo difícil de alcançar. A exigência da imagem, do valor que nos é atribuído, não permite fragilidades. Jung diz que "a sombra é um problema moral que desafia a totalidade do ego-personalidade, pois ninguém se torna consciente da sombra sem um esforço moral considerável. Tornar-se consciente disso implica reconhecer os aspectos mais negros da personalidade como presentes e reais" ("The Shadow", CW 9ii, 1979, par. 14). A sombra é parte de nós, da nossa personalidade, a que queremos negar a existência, mas da qual não se pode fugir e cujo confronto é inevitável. Em última análise, a sombra representa um conjunto de expressões do inconsciente que apontam para o medo da morte, da aniquilação e da decadência. Hoje isso está particularmente presente na vontade narcisista de ignorar a morte e o envelhecimento. Criou-se a ilusão que se comermos bem, formos activos e, quando formos velhos, dermos muitos pinotes, evitamos a decadência própria da nossa condição humana. A doença e a morte não são tão criteriosas como julgamos, pois agarram qualquer um e, quase sempre, sem aviso prévio, mas essa é também a beleza de ser humano. A imortalidade dos deuses não permite que se dê valor ao momento e às pequenas coisas.

   O ser humano, contrariamente às outras espécies, tem a possibilidade de se expressar através de uma dualidade que tem tanto de belo como de horror. Os outros animais movem-se por instintos e emoções primárias. Jung apresenta esta dicotomia através dos conceitos de Self e de Sombra. Se a sombra é o nosso lado negro, o Self é o "Deus dentro nós" ("The Mana-Personality", CW 7, 1972, par. 399). O narcisismo faz com que a Sombra negue o Self e ao fazê-lo arrasta a personalidade, o ego, para uma realidade onde o arquétipo numinoso de totalidade está ausente ou, no mínimo, projectado na visão que o narcisista tem de si próprio. O narcisista é o único deus na sala, é o centro, o umbigo da realidade, daí a sua dificuldade em se relacionar com os outros. A remissão do humano ocorre devido a essa mesma impossibilidade. Actualmente, a incapacidade de nos relacionarmos como humanos é particularmente visível quando vemos, sobretudo nas redes sociais e nas conversas informais, um predisposição para sentir maior empatia por um animal maltratado do que por um outro ser humano, mesmo que seja uma criança, numa situação em que a dignidade lhe foi retirada. Uma vez que não nos conseguimos relacionar salutarmente, projectamos nos animais, sobretudo os domésticos, essa fragilidade. Estamos a humanizar os animais e a desumanizar as pessoas e a causa primeira desse processo é um narcisismo generalizado. O cão ou gato não nos contraria de igual para igual, não nos apresenta desafios morais e comportamentais. Face ao animal, continuamos a ser superiores, mas fingimos que somos iguais. É óbvio que a nossa compreensão acerca dos animais evoluiu, já não os consideramos meros seres sem alma e irracionais, hoje atribuímos-lhes emoções, até sentimentos, e funções cerebrais e cognitivas superiores ao que julgávamos. No entanto, o ser humano tem capacidades que o distinguem. O animal vive a realidade, mantém as prerrogativas da natureza, sem ter a consciência ou o espírito crítico para a transformar, essa capacidade reinterpretativa pertence ao humano. O animal utiliza os recursos naturais, o humano cria. A arte e a cultura são fenómenos humanos. O ser humano não vive apenas a realidade, dá-lhe sentido e valor. Só o humano pode intuir a ideia de Deus. Por outro lado, o ser humano pode querer ser deliberadamente ignorante e praticar o mal pelo mal, tornando-o banal. É essa complexidade que nos define.

   O narcisismo da sociedade actual, o individualismo radical e generalizado, fez com que a humanidade não evoluísse como era esperado, senão mesmo regredisse. Há umas décadas atrás, quando tanto se fazia e se esperava pelos direitos das mulheres, ninguém acreditaria que estaríamos onde estamos. Em pleno século XXI, as mulheres são agredidas por serem mulheres e são mortas por serem mulheres. Continuamos a preferir a Marilyn Monroe a cantar submissa para o Presidente Kennedy do que a Norman Jeane a ler o Ulisses de James Joyce. É preciso resgatar o humano. A humanidade tem de abraçar a sua sombra, a sua finitude, a sua efemeridade, e elevar-nos na divindade que arde esquecida em nós.